A jornalista inglesa Felicity Lawrence percebeu que havia algo
errado com seu gato. O bichano não parava de engordar. Ela resolveu
saber por que e descobriu que era culpa da ração, que levava quase os
mesmos ingredientes das comidas prontas do supermercado: farinha de
milho, derivados de soja, arroz, gordura vegetal hidrogenada,
concentrado de proteínas, beterraba desidratada, um plus de ômega 3 e um
delicioso sabor de atum. Gatos de antigamente não comiam essas coisas –
e nós tampouco. Felicity resolveu investigar o tema e descobriu que a
incidência de diabetes em gatos cresce pelo mesmo motivo que a diabetes
em seres humanos. “Nossa dieta mudou completamente nos últimos 50 anos.
Parece que nunca tivemos tanta escolha, mas na verdade um pequeno grupo
de ingredientes – alguns nem usados como comida no passado – está
presente em quase tudo o que comemos”, diz Felicity. “Mais de 60% da
comida processada na Inglaterra contém soja em alguma forma, de queijos a
sorvetes, de biscoitos a barras de cereal.” Segundo ela, acreditamos na
aura saudável dos nutrientes que surgem todo dia nas embalagens, sem
saber que essa dieta industrial tem provocado obesidade, diabetes,
câncer e doenças do coração.
Como foi que nos tornamos gordos?
A obesidade pode ter várias causas, como a predisposição genética,
mas certamente a combinação entre a dieta industrializada e a queda na
atividade física desempenha um enorme papel. Isso aconteceu sobretudo
depois da 2ª Guerra Mundial, grandes companhias começaram a produzir
comida barata e pouco nutritiva. Nessas décadas, os engenheiros de
alimentos ficaram mais preocupados com o barateamento dos produtos e dos
processos de produção que com a saúde dos consumidores. O que comemos
hoje é resultado disso. Alimentos processados têm alto teor de energia,
baixo valor nutricional e não produzem uma sensação de saciedade. Você
come e, como não se sente satisfeito, vai para outra porção. Assim acaba
ingerindo grande quantidade de caloria em pouco tempo.
O que provocou essa transformação na nossa forma de comer?
A correria do trabalho contribuiu, pois não temos muito tempo para
fazer nossa própria comida. Mas talvez o fator mais importante seja o
sistema adotado pela indústria de alimentos, que nos impede de saber
como as comidas são produzidas. Quando vai a um supermercado, você
encontra pedaços de carne, frango e porco, tudo empacotado, e não tem
nenhuma idéia de onde vem tudo aquilo. Na verdade, comemos os mesmos
ingredientes, mas achando que são alimentos diferentes. Nas últimas
décadas, o jeito como consumimos gordura mudou drasticamente. Antes,
sabíamos que estávamos ingerindo uma comida gordurosa. Hoje, a indústria
de alimentos tornou a gordura algo invisível. Com o advento da gordura
hidrogenada, um alimento novo que de repente apareceu em centenas de
produtos, compramos alimentos sem saber o que eles realmente são. E quem
decidiu isso não fomos nós, mas os custos, a facilidade de produção e
até a política internacional.
Como assim?
O milho, por exemplo, está em quase um terço das comidas processadas
no Reino Unido. A soja e seus derivados são usados em dois terços delas.
Farelo de soja, proteína de soja, proteína vegetal hidrolisada,
proteína texturizada de soja, óleo de soja e emulsificante lecitina de
soja estão em barras de cereais, cornflakes, biscoitos, chocolates,
sucos, salsichas, carnes processadas, margarinas, sorvetes, maioneses,
queijos, massas de bolo e muitas outras comidas. O óleo de soja, um
alimento que mal existia nos EUA no começo do século 20, é hoje
responsável por 20% das calorias que os americanos ingerem. E isso vem
de só 10% da soja do mundo, já que os outros 90% são usados como
alimento em granjas. Também encontramos açúcar em suas várias formas
(sacarose, oligofrutose, entre outras), farinha de arroz, óleo de milho,
óleo de palma e diversos tipos de gorduras. Para a indústria da comida,
essa é uma trilha ideal: começamos comendo papinha de bebê, passamos
aos cereais empacotados e daí a comidas prontas. Ou seja, os mesmos
ingredientes, só que em formas diversas.
Por que a indústria usa tanto grãos como soja?
Nos últimos 50 anos, os governos implantaram fortes subsídios a
certos produtos agrícolas, como milho, soja e açúcar – as chamadas
commodities. O resultado foi que elas puderam ser produzidas e vendidas
no mercado global a preços baixos. Foi fácil parar de vender vegetais
frescos e começar a vender grãos, açúcares e gorduras em produtos
manufaturados baratos. Com a atual elevação do valor da soja, temos um
problema, porque boa parte da comida processada depende dela.
A comida hoje provoca ansiedade ou prazer?
Ansiedade, e isso se deve, primeiro, porque nos desconectamos da
forma como a comida é feita. Estamos muito confusos sobre o que é
saudável e o que não é. Recebemos recomendações de todos os lados,
muitas vezes determinadas por campanhas de marketing. Um dia temos que
parar de comer gorduras saturadas, no outro gorduras trans, e assim por
diante. A confusão é tanta que pedimos conselhos de empresas antes de
comer, o que gera conseqüências desastrosas para a nossa saúde.
Quais?
O aumento do consumo de comida processada para bebês, por exemplo. Os
pais preferem comprá-la porque já não confiam em si próprios. Acham que
não podem fazer papinhas do jeito certo. Durante séculos, as pessoas
compartilharam os pratos com os filhos, mas agora se submetem a
instruções pseudocientíficas antes de decidir o que dar a eles. Também
substituem leite materno por leite industrial. Os sabores do leite
materno estimulam a bebê a buscar uma dieta variada de alimentos nos
anos seguintes. Isso é fundamental para que ela desenvolva uma atitude
saudável diante da comida. Do mesmo modo, a margarina já foi indicada
como uma opção mais saudável que a manteiga. Hoje, acredita-se no
contrário.
Qual o problema dos cereais que comemos no café-da-manhã?
São comidas tipicamente processadas. Quando o grão inteiro passa pelo
sistema de processamento pesado, muitos de seus minerais e vitaminas
são retirados – porque estragariam antes da venda – ou destruídos pelo
calor. No final, as indústrias colocam de volta, para compensar, algumas
vitaminas e minerais – que viram campanha de marketing do tipo
“enriquecido com vitaminas”, “com ômega 3” ou “com ferro e cálcio”. Mas
nada disso é comparável ao valor nutritivo que o grão inteiro tinha no
início. Além do menor valor nutritivo, esse é um jeito muito caro de
comer. Mais barato é comprar o grão inteiro e fazer o café-da-manhã com
ele.
Essa alimentação também faz mal para o mundo?
É claro que esse sistema tem um custo social. De um lado, está a
conseqüência para os consumidores – as taxas de obesidade aumentam em
todo o mundo. De outro lado, está o interesse dos produtores. Para esse
sistema funcionar, é preciso haver uma produção maciça de matéria-prima.
Em diversos países, a zona rural virou um campo de produção para a
indústria alimentícia. O Brasil é o melhor exemplo. Eu visitei a
Amazônia e vi pessoalmente o que acontece. As áreas do sul da Amazônia
que eram imensas florestas hoje são enormes plantações de soja.
Você diz que esse modelo de produção foi
exportado para o mundo pelos EUA e pelas grandes corporações. Os
poderosos são os únicos que nos fazem comer assim?
Não creio que exista uma conspiração. Mas foi por causa dessa
estrutura que embarcamos num caminho pouco saudável. Muita gente sofre
de doença cardíaca, câncer, diabetes, obesidade e outros problemas
relacionados com a dieta. As indústrias de alimento lucram dizendo que
estão “agregando valor”, mas na verdade agregam valor aos seus
acionistas.
De que forma?
Com um simples grão, elas podem ganhar certa quantidade de dinheiro.
Mas podem ganhar mais quando “agregam valor”. Ou seja: usando esse grão
para alimentar animais e vendê-los na forma de carne. E podem ganhar
ainda mais se processam essa carne para vender comida pronta. Quanto
mais agregam valor, mais tiram os nutrientes – e maiores são as suas
margens de lucro.
Por outro lado, muitos afirmam que o sistema
industrial foi essencial para alimentar as populações maiores nas
últimas décadas. Não concorda?
Esse é um dos argumentos. Mas a pergunta é: esse sistema está
alimentando bem as pessoas? Segundo diversas fontes, há 1 bilhão de
pessoas com sobrepeso no mundo, e muitas sofrem doenças relacionadas com
a má alimentação. Ao mesmo tempo, existem também 850 milhões de pessoas
que ainda passam fome todos os dias. Parece que esse sistema não está
alimentando bem o mundo, e sim concentrando os lucros nas mãos de poucos
e a gordura no corpo de muitos.
Alguns especialistas dizem que rotular as
comidas como boas ou ruins não causa mais distúrbios alimentares, como
anorexia? É verdade?
Podemos falar de alimentação saudável com regras bem simples. Elas só
se tornam difíceis quando resolvemos buscar novos produtos que prometem
resolver todos os nossos problemas.
Regime de engorda
Para Felicity, esta é a receita que está tornando o mundo obeso
Gordura
A criação da gordura vegetal hidrogenada tornou possível misturarmos
gordura com doces, como no sorvete. A popularização dos novos tipos de
gordura, como a trans, aconteceu antes de sabermos o efeito que eles
teriam no corpo.
+
Soja
Apesar de ser um alimento raro no mundo ocidental até a 2ª Guerra
Mundial, ela está hoje em 60% das comidas industrializadas da
Inglaterra. Sem contar as carnes vindas de animais alimentados com soja,
como a carne de frango.
+
Açúcar
Não pense que ele está apenas em doces e chocolates. Quase todos os
alimentos industrializados de hoje levam açúcar, como pizzas,
hambúrgueres, salsichas e até alguns tipos de cerveja, em substituição
ao malte.
=
Resultado
Mais de 1 bilhão de pessoas têm sobrepeso no mundo. O problema não é só
de países ricos, como os EUA. No Brasil, há mais pessoas gordas que
famintas. São 27 milhões de adultos com sobrepeso – a maioria deles das
classes mais pobres.
Felicity Lawrence
• É repórter especial do jornal inglês The Guardian, especializada em temas do consumidor.
• Ganhou prêmios investigando a relação da produção de alimentos com a
mudança climática, as migrações em massa e a exploração da mão-de-obra.
• Nos anos 90, passou dois anos trabalhando com refugiados afegãos na fronteira com o Paquistão.
• Para escrever os livros, ela conversou com africanos que colhem
tomate na Itália, ouviu agricultores poloneses e brasileiros de
plantações de soja da Amazônia.
• Adora cozinhar receitas tradicionais inglesas para seus 3 filhos: peixe é o prato mais comum.
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