“O ciclo de vida do salmão selvagem tem início quando a
fêmea adulta deposita os ovos entre as pedras dos leitos dos rios.
Depois da eclosão do ovo, o filhote de salmão permanece no rio por um
período que varia de acordo com a temperatura da água e a quantidade de
comida disponível. Tão logo seu sistema interno esteja adaptado à vida
em água salgada, ele migra para o oceano. Depois de um a quatro anos no
mar, ele migra mais uma vez, nadando contra a correnteza, e usando sua
capacidade de saltar até 3 metros de altura para transpor numerosas
quedas d’água e, surpreendentemente, voltar ao rio onde nasceu para
fazer a desova e dar início a um novo ciclo de vida”.
O texto acima, retirado do livro “Salmão”, da editora Manole, chega a
ser tal qual a própria natureza: poético. Os ovos entre as pedras dos
leitos dos rios e a migração entre águas salgadas e doces são os versos
do movimento circular que a vida nos impõe, entre começos, fins e (re)
começos.
Pois o salmão, um “simples” peixe de águas frias, guarda seus
segredos na parte interna da carne e nos dá uma verdadeira aula sobre a
beleza cíclica da existência: aquilo que o Homo sapiens tem dificuldade de sentir e é mestre em interromper.
Como assim?
Nos últimos anos, é mais do que visível o aumento no número de
cardápios com pratos à base de salmão que surgiram no nosso cotidiano.
De norte a sul, o peixe ganhou destaque em supermercados, peixarias, temakerias e restaurantes do nosso Brasil tropical. Tudo lindo? Seria, se ficássemos apenas com o sabor da carne.
Mas o salmão descrito no primeiro parágrafo desse texto é conhecido
como salmão selvagem. A pesca em demasia e sem cuidados necessários com
os ciclos reprodutivos provocou uma queda considerável no número de
peixes ao longo do século XX. Os anos 80 marcaram o início da criação do
salmão em cativeiro, uma alternativa encontrada para controlar a
reprodução e produtividade dos estoques pesqueiros em todo mundo – tudo
na lógica do “para quê depender da boa vontade da natureza, se há
mecanismos para fazer diferente?”.
A prática é conhecida como aquicultura, que se refere ao cultivo de
diversos organismos aquáticos em ambiente limitado e controlado, com
intervenções e manejo do processo visando o aumento da
produção. Atualmente, cerca de 70% do salmão consumido no mundo é
proveniente de cativeiros. O cultivo é uma importante atividade
econômica em países como Noruega e Chile, os maiores produtores
mundiais, respectivamente. E é do nosso vizinho latino que vem
praticamente todo o salmão consumido no Brasil.
Qual o problema do cativeiro?
Cativeiro, por definição e sonoridade, não é uma palavra, digamos,
carinhosa. Pode ser traduzida como “servidão, escravidão, prisão”. O
cativo é aquele “sem liberdade, capturado, preso ou escravo”, de acordo
com o dicionário Houaiss. Essa breve consideração semântica é o
suficiente para darmos outro significado àquilo que consideramos
mercadoria. Antes de ser um produto que vai ao mercado, o salmão é ser
cativo de um sistema alimentar que se desenvolveu com foco na
produtividade, não na alimentação.
O problema é pior porque não pára por aí. Não podemos esquecer que
qualquer cadeia produtiva é formada por pedaços, fragmentos invisíveis
aos olhos, elos desconexos que de alguma forma, ao final, se unem e
passam a ter valor de troca no mercado – independentemente dos custos
que estejam embutidos, como os sociais, ambientais e culturais.
Exemplos: desrespeito aos direitos trabalhistas básicos, poluição e
contaminação de águas e solo, desapropriação de comunidades de suas
terras e muitos outros.
No cativeiro, o salmão nasce a partir de fertilização artificial e o
início da sua vida é também em água doce. A migração para o oceano, na
“vida real”, é feita na chegada da primavera, estação do ano que é
forjada artificialmente por meio de variações da luz de lâmpadas no
sistema fechado. Na hora de ir para o mar, os peixes são levados por
caminhões ou até helicópteros. Uma vez em águas salgadas, seguem os
processos do manejo industrial e vão para o mercado. Da fertilização até
o consumo são mais ou menos 2 anos
(veja mais informações em reportagem da Folha, que viajou ao Chile para entender como é o processo).
Desovando os problemas…
O projeto global “
Pure Salmon Campaign”,
que envolve EUA, Canadá, Europa, Austrália e Chile, faz uma série de
apontamentos sobre os problemas ambientais, sociais e de saúde que estão
relacionados ao cultivo controlado.
Um dos principais problemas é a insustentabilidade da alimentação
fornecida nos criadouros. O documentário “Pure Salmón” mostra que para
muitos cientistas o cultivo em cativeiro é desastroso e está acabando
com os recursos pesqueiros ao redor do mundo. Em grande parte, isso
acontece porque há uma rede paralela de fornecimento de outras espécies
de peixes que servem de alimento para o salmão. Calcula-se que até cinco
quilos de pescados e krill (semelhante ao camarão) são necessários para
produzir um quilo de salmão. “A indústria de farinha de pescado compete
com os humanos por peixes. Equivale a roubar alimento da boca das
pessoas e alimentar os salmões que são, por si, um luxo para pessoas de
países ricos”, comenta Daniel Pauly, da University of British Columbia.
Veja o documentário abaixo, com 23 minutos (disponível com legendas em espanhol):
Em entrevista ao
site do Instituto Akatu,
Andrew Sharpless, especialista de uma das maiores organizações
internacionais dedicadas à proteção dos oceanos, defende que o grande
responsável pelo colapso da indústria pesqueira é a superexploração e
diz que existe interesse da indústria em reduzir essa proporção (5
quilos de pescados para 1 quilo de salmão produzido) com a introdução de
grãos na alimentação. “Mas isso prejudica o sabor. Até o momento, esse é
um problema sem solução. Por isso, comer salmão não é algo bom para o
oceano”, enfatiza.
O desperdício de milhões de peixes de cultivo vão diretamente para o
oceano, contaminando a água com resíduos sem tratamento e químicos
tóxicos. Além disso, o cativeiro é local ideal para enfermidades e
parasitas contagiosos que podem atingir as espécies silvestres,
prejudicando o equilíbrio da fauna marinha (a semelhança não é mera
coincidência: sistemas intensivos de produção agrícola, as monoculturas,
também são ambiente fértil ao aparecimento de pragas, o que exige
aplicação massiva de agrotóxicos).
Um exemplo é o “piolho do mar”, pequeno crustáceo que “gruda” no
salmão e arrasa produções inteiras. Entrevistado no documentário,
Alejandro Buschmannm, da Universidad de Los Lagos, no Chile, resume bem a
história: “Não se pode simplesmente aumentar a produtividade sem levar
em conta as vulnerabilidades dos sistemas costeiros. Nós reclamamos que o
país ou o governo não regulam o suficiente. Mas também é relevante
dizer que as companhias fizeram um forte lobby contra a regulação.
Assim, de um lado você tem um governo fraco e de outro uma forte pressão
das companhias”.
A falta de regulação também se reflete nas questões trabalhistas. O
crescimento explosivo na demanda por produtos marinhos levou as
companhias, muitas da União Europeia, a abrir operações de cultivo de
salmão onde os custos laborais são baixos e as regulações ambientais são
poucas. Os efeitos positivos são visíveis para as multinacionais, mas
levam a abusos de trabalho e práticas questionáveis.
Em 2011, por exemplo,
uma investigação realizada pelo governo do Chile
descobriu que a filial chilena de uma empresa com base na Noruega era
responsável por uma série de violações trabalhistas e foi multada por
não prover equipamentos de proteção aos empregados, não entregar
contratos aos trabalhadores, exigir sete dias de trabalho por semana e
suspender ilegalmente o primeiro líder sindical eleito.
E tem mais…
Corantes artificiais, subprodutos tóxicos e antibióticos que podem
causar câncer e outros problemas de saúde estão presentes em vários
níveis no tecido do salmão de cativeiro. Em 1999, a Organização Mundial
de Saúde advertiu sobre a popularidade crescente do peixe e os riscos
potenciais sobre a saúde humana. O problema também é apontado pela “Pure
Salmon Campaign”.
Em
reportagem do UOL,
a nutróloga Marcella Garcez, membro da Abran (Associação Brasileira de
Nutrologia), explica que para o salmão de cativeiro ficar com a cor
igual ao selvagem são adicionados à ração carotenoides como a
astaxantina e a cantaxantina e “o consumo excessivo destes pigmentos
pode causar intoxicação e alergias”.
Nos EUA, um grupo de consumidores
processou criadores de salmão
ao descobrir que o peixe, na verdade, é cinza. Na natureza, ele ganha
coloração rosada por se alimentar de algas e crustáceos que possuem
pigmentos naturais. Na indústria, os pigmentos entram artificialmente na
alimentação oferecida.
E só para piorar um pouco mais, este ano uma empresa norte-americana
de biotecnologia anunciou o salmão transgênico, com genes de enguia, que
chega ao seu tamanho máximo duas vezes mais rápido. E vai ficando cada
vez mais difícil…
O transgênico e o “convencional” com a mesma idade:
A lista vermelha: resumo de problemas e outros peixes
Uma
publicação de 2008 do Greenpeace de Portugal
mostra diversas espécies de peixe que devem entrar para a lista
vermelha do consumo, como atum e bacalhau do Atlântico. O salmão, claro,
está lá. O arquivo traz um resumo dos motivos pelos quais se deve
evitar o peixe:
1. A sobrepesca
O uso de peixes e a elaboração de farinha e óleo de peixe para
alimentar os peixes de cativeiro aumenta a pressão da pesca nos recursos
naturais. São necessários cerca de 4 a 5 quilos de outros peixes para
que um salmão engorde um quilo.
2. Evasão de espécies
Há uma grande quantidade de salmões que escapam dos cativeiros.
Estes indivíduos quando cruzados com salmões selvagens produzem crias
que estão menos preparadas para sobreviver no meio selvagem. Este é um
fator de risco para a sobrevivência da população quase inexistente nos
mares e oceanos.
3. Abusos
No caso Chileno, mais de 50 trabalhadores perderam a vida em
acidentes de trabalho nos últimos três anos. Também há relatos de
salários ao nível do limiar da pobreza, dias de trabalho extremamente
longos e desrespeito pelos direitos humanos.
4. Contaminação química
Devido à grande quantidade de produtos químicos e fármacos
usados para controlar os vírus, as bactérias, os fungos e outros agentes
patogénicos do salmão em cativeiros, há perigo de contaminação de águas
e de danificação da biodiversidade nas proximidades.
Socorro! O que eu faço?
É difícil chegar à equação dos sonhos, ou seja: continuar comendo
salmão + não alimentar esse sistema produtivo cheio de problemas. Se
você gosta mesmo de peixe, deve colar na porta da geladeira a primeira
lição: prefira sempre produtos locais, frescos, que estão mais próximos a
você.
O
Slow Fish,
parte do movimento Slow Food, considera que “com a pesca, assim como
com a agricultura, cada indivíduo pode contribuir em algum nível para
mudar os mecanismos de um sistema alimentar globalizado baseado na
exploração intensiva de recursos”. A ideia é redescobrir os sabores
esquecidos e as espécies locais, que tendem a cair no esquecimento em um
mercado massificado, e dar valor especial à sabedoria tradicional de
comunidades de pescadores. Os princípios fundamentais do Slow Fish se
baseiam no consumo de peixe bom, limpo e justo. E o que seria isso?
Peixe bom é aquele fresco, saboroso e da estação, que satisfaz os
sentidos e está associado à nossa cultura e à identidade local. Peixe
limpo é aquele produzido por métodos que respeitam o meio ambiente e a
saúde humana. E peixe justo é aquele que tem preços acessíveis para os
consumidores ao mesmo tempo que garante condições dignas de trabalho e
de vida para os produtores familiares.
É importante lembrar: todos esses princípios correspondem a uma visão
global da produção de alimentos, levando em consideração a capacidade
do ambiente de se renovar. Logo, eles são aplicáveis a todos os
alimentos, não apenas aos peixes.
Você também pode saber mais nos
materiais de apoio do movimento,
que disponibiliza guias de consumo responsável, tabela de tamanhos
mínimos de pescado, tabelas de período de defeso, manual de cuidados com
a higiene na manipulação de peixes.
Também existem certificações para criação orgânica de salmão. A
certificação não pode ser concedida a peixes marinhos que nadam
livremente, uma vez que é quase impossível determinar seu histórico e as
condições em que vivem. Apenas peixes cultivados em ambientes
controlados recebem o selo.
As diferenças entre o orgânico e o convencional estão na alimentação,
nas condições de vida e no uso de substâncias químicas. O livro
“Salmão”, citado no começo do post, explica que “nos criatórios de
salmão orgânico, as gaiolas abrigam uma quantidade de peixe sempre muito
inferior à dos criatórios convencionais, e geralmente são colocadas em
água com forte correnteza. Dessa forma, o salmão se exercita mais e
desenvolve maior tônus muscular, eliminando a necessidade do uso de
pesticidas químicos para controlar o piolho do mar, bastante comum em
ambientes superpovoados. A carne do salmão orgânico, fresco ou defumado,
em geral é um pouco mais clara do que a do salmão tradicional, devido á
ausência de corantes artificiais em sua dieta – o salmão orgânico é
alimentado à base de casca de camarão picado, e não de corantes
cor-de-rosa – e, por isso, pode parecer menos atraente para quem não
conhece sua cor natural”.
Em tempos de comida sem alma, definitivamente o conceito de alimento atraente é muito relativo.
Fontes:
Salmão, Editora Manole (2004)
Folha de S. Paulo
Pure Salmon Campaign
Instituto Akatu
Greenpeace
Slow Fish
Imagens: SXC.HU; AquaBounty
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