O texto acima, retirado do livro “Salmão”, da editora Manole, chega a ser tal qual a própria natureza: poético. Os ovos entre as pedras dos leitos dos rios e a migração entre águas salgadas e doces são os versos do movimento circular que a vida nos impõe, entre começos, fins e (re) começos.
Pois o salmão, um “simples” peixe de águas frias, guarda seus segredos na parte interna da carne e nos dá uma verdadeira aula sobre a beleza cíclica da existência: aquilo que o Homo sapiens tem dificuldade de sentir e é mestre em interromper.
Como assim?
Nos últimos anos, é mais do que visível o aumento no número de cardápios com pratos à base de salmão que surgiram no nosso cotidiano. De norte a sul, o peixe ganhou destaque em supermercados, peixarias, temakerias e restaurantes do nosso Brasil tropical. Tudo lindo? Seria, se ficássemos apenas com o sabor da carne.
Mas o salmão descrito no primeiro parágrafo desse texto é conhecido como salmão selvagem. A pesca em demasia e sem cuidados necessários com os ciclos reprodutivos provocou uma queda considerável no número de peixes ao longo do século XX. Os anos 80 marcaram o início da criação do salmão em cativeiro, uma alternativa encontrada para controlar a reprodução e produtividade dos estoques pesqueiros em todo mundo – tudo na lógica do “para quê depender da boa vontade da natureza, se há mecanismos para fazer diferente?”.
A prática é conhecida como aquicultura, que se refere ao cultivo de diversos organismos aquáticos em ambiente limitado e controlado, com intervenções e manejo do processo visando o aumento da produção. Atualmente, cerca de 70% do salmão consumido no mundo é proveniente de cativeiros. O cultivo é uma importante atividade econômica em países como Noruega e Chile, os maiores produtores mundiais, respectivamente. E é do nosso vizinho latino que vem praticamente todo o salmão consumido no Brasil.
Qual o problema do cativeiro?
Cativeiro, por definição e sonoridade, não é uma palavra, digamos, carinhosa. Pode ser traduzida como “servidão, escravidão, prisão”. O cativo é aquele “sem liberdade, capturado, preso ou escravo”, de acordo com o dicionário Houaiss. Essa breve consideração semântica é o suficiente para darmos outro significado àquilo que consideramos mercadoria. Antes de ser um produto que vai ao mercado, o salmão é ser cativo de um sistema alimentar que se desenvolveu com foco na produtividade, não na alimentação.
O problema é pior porque não pára por aí. Não podemos esquecer que qualquer cadeia produtiva é formada por pedaços, fragmentos invisíveis aos olhos, elos desconexos que de alguma forma, ao final, se unem e passam a ter valor de troca no mercado – independentemente dos custos que estejam embutidos, como os sociais, ambientais e culturais. Exemplos: desrespeito aos direitos trabalhistas básicos, poluição e contaminação de águas e solo, desapropriação de comunidades de suas terras e muitos outros.
No cativeiro, o salmão nasce a partir de fertilização artificial e o início da sua vida é também em água doce. A migração para o oceano, na “vida real”, é feita na chegada da primavera, estação do ano que é forjada artificialmente por meio de variações da luz de lâmpadas no sistema fechado. Na hora de ir para o mar, os peixes são levados por caminhões ou até helicópteros. Uma vez em águas salgadas, seguem os processos do manejo industrial e vão para o mercado. Da fertilização até o consumo são mais ou menos 2 anos (veja mais informações em reportagem da Folha, que viajou ao Chile para entender como é o processo).
Desovando os problemas…
O projeto global “Pure Salmon Campaign”, que envolve EUA, Canadá, Europa, Austrália e Chile, faz uma série de apontamentos sobre os problemas ambientais, sociais e de saúde que estão relacionados ao cultivo controlado.
Um dos principais problemas é a insustentabilidade da alimentação fornecida nos criadouros. O documentário “Pure Salmón” mostra que para muitos cientistas o cultivo em cativeiro é desastroso e está acabando com os recursos pesqueiros ao redor do mundo. Em grande parte, isso acontece porque há uma rede paralela de fornecimento de outras espécies de peixes que servem de alimento para o salmão. Calcula-se que até cinco quilos de pescados e krill (semelhante ao camarão) são necessários para produzir um quilo de salmão. “A indústria de farinha de pescado compete com os humanos por peixes. Equivale a roubar alimento da boca das pessoas e alimentar os salmões que são, por si, um luxo para pessoas de países ricos”, comenta Daniel Pauly, da University of British Columbia.
Veja o documentário abaixo, com 23 minutos (disponível com legendas em espanhol):
Em entrevista ao site do Instituto Akatu, Andrew Sharpless, especialista de uma das maiores organizações internacionais dedicadas à proteção dos oceanos, defende que o grande responsável pelo colapso da indústria pesqueira é a superexploração e diz que existe interesse da indústria em reduzir essa proporção (5 quilos de pescados para 1 quilo de salmão produzido) com a introdução de grãos na alimentação. “Mas isso prejudica o sabor. Até o momento, esse é um problema sem solução. Por isso, comer salmão não é algo bom para o oceano”, enfatiza.
O desperdício de milhões de peixes de cultivo vão diretamente para o oceano, contaminando a água com resíduos sem tratamento e químicos tóxicos. Além disso, o cativeiro é local ideal para enfermidades e parasitas contagiosos que podem atingir as espécies silvestres, prejudicando o equilíbrio da fauna marinha (a semelhança não é mera coincidência: sistemas intensivos de produção agrícola, as monoculturas, também são ambiente fértil ao aparecimento de pragas, o que exige aplicação massiva de agrotóxicos).
Um exemplo é o “piolho do mar”, pequeno crustáceo que “gruda” no salmão e arrasa produções inteiras. Entrevistado no documentário, Alejandro Buschmannm, da Universidad de Los Lagos, no Chile, resume bem a história: “Não se pode simplesmente aumentar a produtividade sem levar em conta as vulnerabilidades dos sistemas costeiros. Nós reclamamos que o país ou o governo não regulam o suficiente. Mas também é relevante dizer que as companhias fizeram um forte lobby contra a regulação. Assim, de um lado você tem um governo fraco e de outro uma forte pressão das companhias”.
A falta de regulação também se reflete nas questões trabalhistas. O crescimento explosivo na demanda por produtos marinhos levou as companhias, muitas da União Europeia, a abrir operações de cultivo de salmão onde os custos laborais são baixos e as regulações ambientais são poucas. Os efeitos positivos são visíveis para as multinacionais, mas levam a abusos de trabalho e práticas questionáveis.
Em 2011, por exemplo, uma investigação realizada pelo governo do Chile descobriu que a filial chilena de uma empresa com base na Noruega era responsável por uma série de violações trabalhistas e foi multada por não prover equipamentos de proteção aos empregados, não entregar contratos aos trabalhadores, exigir sete dias de trabalho por semana e suspender ilegalmente o primeiro líder sindical eleito.
E tem mais…
Corantes artificiais, subprodutos tóxicos e antibióticos que podem causar câncer e outros problemas de saúde estão presentes em vários níveis no tecido do salmão de cativeiro. Em 1999, a Organização Mundial de Saúde advertiu sobre a popularidade crescente do peixe e os riscos potenciais sobre a saúde humana. O problema também é apontado pela “Pure Salmon Campaign”.
Em reportagem do UOL, a nutróloga Marcella Garcez, membro da Abran (Associação Brasileira de Nutrologia), explica que para o salmão de cativeiro ficar com a cor igual ao selvagem são adicionados à ração carotenoides como a astaxantina e a cantaxantina e “o consumo excessivo destes pigmentos pode causar intoxicação e alergias”.
Nos EUA, um grupo de consumidores processou criadores de salmão ao descobrir que o peixe, na verdade, é cinza. Na natureza, ele ganha coloração rosada por se alimentar de algas e crustáceos que possuem pigmentos naturais. Na indústria, os pigmentos entram artificialmente na alimentação oferecida.
E só para piorar um pouco mais, este ano uma empresa norte-americana de biotecnologia anunciou o salmão transgênico, com genes de enguia, que chega ao seu tamanho máximo duas vezes mais rápido. E vai ficando cada vez mais difícil…
O transgênico e o “convencional” com a mesma idade:
A lista vermelha: resumo de problemas e outros peixes
Uma publicação de 2008 do Greenpeace de Portugal mostra diversas espécies de peixe que devem entrar para a lista vermelha do consumo, como atum e bacalhau do Atlântico. O salmão, claro, está lá. O arquivo traz um resumo dos motivos pelos quais se deve evitar o peixe:
1. A sobrepesca
O uso de peixes e a elaboração de farinha e óleo de peixe para alimentar os peixes de cativeiro aumenta a pressão da pesca nos recursos naturais. São necessários cerca de 4 a 5 quilos de outros peixes para que um salmão engorde um quilo.
2. Evasão de espécies
Há uma grande quantidade de salmões que escapam dos cativeiros. Estes indivíduos quando cruzados com salmões selvagens produzem crias que estão menos preparadas para sobreviver no meio selvagem. Este é um fator de risco para a sobrevivência da população quase inexistente nos mares e oceanos.
3. Abusos
No caso Chileno, mais de 50 trabalhadores perderam a vida em acidentes de trabalho nos últimos três anos. Também há relatos de salários ao nível do limiar da pobreza, dias de trabalho extremamente longos e desrespeito pelos direitos humanos.
4. Contaminação química
Devido à grande quantidade de produtos químicos e fármacos usados para controlar os vírus, as bactérias, os fungos e outros agentes patogénicos do salmão em cativeiros, há perigo de contaminação de águas e de danificação da biodiversidade nas proximidades.
Socorro! O que eu faço?
É difícil chegar à equação dos sonhos, ou seja: continuar comendo salmão + não alimentar esse sistema produtivo cheio de problemas. Se você gosta mesmo de peixe, deve colar na porta da geladeira a primeira lição: prefira sempre produtos locais, frescos, que estão mais próximos a você.
O Slow Fish, parte do movimento Slow Food, considera que “com a pesca, assim como com a agricultura, cada indivíduo pode contribuir em algum nível para mudar os mecanismos de um sistema alimentar globalizado baseado na exploração intensiva de recursos”. A ideia é redescobrir os sabores esquecidos e as espécies locais, que tendem a cair no esquecimento em um mercado massificado, e dar valor especial à sabedoria tradicional de comunidades de pescadores. Os princípios fundamentais do Slow Fish se baseiam no consumo de peixe bom, limpo e justo. E o que seria isso?
Peixe bom é aquele fresco, saboroso e da estação, que satisfaz os sentidos e está associado à nossa cultura e à identidade local. Peixe limpo é aquele produzido por métodos que respeitam o meio ambiente e a saúde humana. E peixe justo é aquele que tem preços acessíveis para os consumidores ao mesmo tempo que garante condições dignas de trabalho e de vida para os produtores familiares.
É importante lembrar: todos esses princípios correspondem a uma visão global da produção de alimentos, levando em consideração a capacidade do ambiente de se renovar. Logo, eles são aplicáveis a todos os alimentos, não apenas aos peixes.
Você também pode saber mais nos materiais de apoio do movimento, que disponibiliza guias de consumo responsável, tabela de tamanhos mínimos de pescado, tabelas de período de defeso, manual de cuidados com a higiene na manipulação de peixes.
Também existem certificações para criação orgânica de salmão. A certificação não pode ser concedida a peixes marinhos que nadam livremente, uma vez que é quase impossível determinar seu histórico e as condições em que vivem. Apenas peixes cultivados em ambientes controlados recebem o selo.
As diferenças entre o orgânico e o convencional estão na alimentação, nas condições de vida e no uso de substâncias químicas. O livro “Salmão”, citado no começo do post, explica que “nos criatórios de salmão orgânico, as gaiolas abrigam uma quantidade de peixe sempre muito inferior à dos criatórios convencionais, e geralmente são colocadas em água com forte correnteza. Dessa forma, o salmão se exercita mais e desenvolve maior tônus muscular, eliminando a necessidade do uso de pesticidas químicos para controlar o piolho do mar, bastante comum em ambientes superpovoados. A carne do salmão orgânico, fresco ou defumado, em geral é um pouco mais clara do que a do salmão tradicional, devido á ausência de corantes artificiais em sua dieta – o salmão orgânico é alimentado à base de casca de camarão picado, e não de corantes cor-de-rosa – e, por isso, pode parecer menos atraente para quem não conhece sua cor natural”.
Em tempos de comida sem alma, definitivamente o conceito de alimento atraente é muito relativo.
Fontes:
Salmão, Editora Manole (2004)
Folha de S. Paulo
Pure Salmon Campaign
Instituto Akatu
Greenpeace
Slow Fish
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Imagens: SXC.HU; AquaBounty
http://super.abril.com.br/blogs/ideias-verdes/dos-mares-gelados-ao-cativeiro-saiba-como-o-salmao-chega-ate-voce/
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