publicado em 14 de fevereiro de 2011 às 21:13
por Conceição Lemes
Hoje, ao anunciar a sua aposentadoria, Ronaldo, do Corinthians,
responsabilizou o hipotiroidismo para o ganho acentuado de peso nos
últimos anos:
– Há quatro anos, no Milan, eu descobri que sofria de um
distúrbio que se chama hipotiroidismo. É um distúrbio que desacelera o
seu metabolismo, e que para controlar esse distúrbio eu teria que tomar
alguns hormônios que não são permitidos no futebol porque seria doping.
Muitos aqui agora talvez estejam arrependidos de terem feito chacota do
meu peso, mas eu não guardo mágoa de ninguém.
Coloque a mão sob a ponta do queixo. Deslize os dedos até a parte
inferior do pescoço. Aí fica a tiroide, glândula produtora dos vitais
hormônios tiroidianos. O hipotiroidismo significa que eles estão sendo
fabricados abaixo do nível considerado normal.
“Estranho o Ronaldo dizer que não tratou o hipotiroidismo, porque
seria doping”, afirma o endocrinologista Gilberto Vieira, professor da
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “O tratamento é com
levotiroxina, o hormônio tiroidiano sintético. O paciente toma o
suficiente para atingir níveis normais no sangue. Nunca ouvi falar em
doping por esse remédio.”
“O remédio não dá doping de jeito nenhum”, avisa o endocrinologista
João Hamilton Romaldini, professor da Faculdade de Ciências Médicas da
PUC de Campinas. “A levotiroxina não é detectada na urina nem produz
qualquer efeito colateral se for bem quantificada.”
“O Ronaldo usou uma má justificativa para o excesso de peso”, alerta
Romaldini. “O hipotiroidismo é sonho dourado de diagnóstico de dez em
cada dez gordinhos. No entanto, não causa obesidade.”
Devido à hipofunção tiroidiana, substâncias chamadas
glicosaminoglicanos se acumulam nos tecidos, retendo líquido. A pessoa
incha. Ao mesmo tempo, diminui a filtração dos rins. O resultado é 3 a 6
quilos a mais na doença avançada, embora nem 40% dos hipotiroideos
tenham aumento de peso importante. Não há ganho de gordura. Em três
meses de tratamento, o peso volta ao normal.
“Além disso, boa parte dos casos de hipotiroidismo é subclínico, ou
seja, os sintomas são muito discretos”, acrescenta Vieira. “Logo, não
precisaria tomar remédio prontamente, mas ser bem acompanhada. O
tratamento em geral é para toda a vida, mas com a dosagem certa o
metabolismo volta ao normal.”
“Ronaldo prestou um desserviço aos obesos e aos hipotiroideos”,
lamenta Romaldini. “Aos obesos, ao levá-los a acreditar equivocadamente
que hipotiroidismo causa obesidade. Aos hipotiroideos, que o remédio
daria doping. Por causa dele, talvez alguns parem o tratamento. Pelo
amor de Deus, não façam isso, sem conversar com o seu médico. O Ronaldo
não sabe o que disse.”
DONA TIROIDE, PEQUENA PODEROSA
E já que o Ronaldo levantou a bola,vamos aproveitar para falar da
tiroide e do hipotiroidismo. Afinal, quem não faz, toma, concordam?
Com formato de borboleta e pesando cerca de 20 gramas, a tiroide é
uma das nossas principais glândulas. Ela fabrica os poderosos hormônios
tiroidianos — substâncias que, via sangue, agem no corpo inteiro, no
desenvolvimento e manutenção de todos os órgãos e funções. Por exemplo,
ajudam o corpo a usar energia e reter calor; fazem cérebro, coração,
músculos e outros órgãos trabalhar devidamente.
“A tiroide trabalha em conjunto com a hipófise (glândula situada no cérebro), num processo de feedback”, ensina Vieira.
Simplificadamente, funciona do seguinte modo: a hipófise fabrica o
hormônio TSH (hormônio estimulante da tiroide), que é lançado na
corrente sanguínea, de onde vai diretamente para a tiroide, levando-a a
produzir hormônios tiroidianos; esses, por sua vez, agem em seguida na
hipófise, controlando a quantidade de secreção de TSH, que, de novo,
estimula a tiróide a fabricar seus hormônios.
E, assim, continuadamente. Se, por qualquer razão, os hormônios
tiroidianos caem ou sobem um pouquinho na circulação, o organismo se
defende. No ato, a hipófise aumenta ou diminui a produção de TSH. Por
isso, sempre que se quer saber como está funcionando a tiroide, tem que
se “consultar” primeiro a hipófise, local mais sensível à ação dos
hormônios tiroidianos. A dosagem do TSH no sangue fornece a informação.
“É como se a hipófise fosse o motorista; a tiroide, o motor do carro;
os hormônios tiroidianos, a velocidade; e o TSH, o acelerador”, compara
Vieira.
No hipotiroidismo, especificamente, a velocidade se reduz. O
motorista pisa, então, no acelerador na tentativa de fazer com que o
carro ande mais e atinja a velocidade de cruzeiro. A princípio, ele
consegue, ainda que à custa de esforço maior do motor.
“Nessa fase, apenas o TSH sobe; a tiroide mantém a produção
praticamente normal e a pessoa não sente nada”, explica Vieira. Mas, com
a evolução da doença, não há acelerador que dê jeito. A atividade da
tiroide cai, o nível dos hormônios tiroidianos baixa muito no sangue e o
metabolismo do organismo todo diminui. É o hipotiroidismo.
TIROIDITE, CAUSA FREQUENTE
Má-formação da glândula, radioterapia ou cirurgia no pescoço e uso de
certos medicamentos, como amiodarona (para angina e arritmia cardíaca),
lítio (antipsicótico), fenilbutazona (antiinflamatório) e sertalina
(antidepressivo), podem ser a causa.
Mas, em 90% dos casos, é a tiroidite de Hashimoto, doença auto-imune
que acomete mais o sexo feminino — principalmente após os 40 anos: o
sistema imunológico não reconhece a tiroide como parte do corpo e a
ataca, inflamando-a ou destruindo-a progressivamente.
“A tiroidite resulta da interação entre predisposição genética e fatores ambientais”, informa Romaldini.
Ou seja, é preciso nascer com o gene responsável pela tiroidite e se
expor aos fatores desencadeantes, que a ciência tenta desvendar.
Provavelmente fatores hormonais influenciam, já que, com freqüência, ela
começa na gravidez, após o parto ou na menopausa. Iodo demais também
torna a tiroide suscetível a doença auto-imune nas pessoas predispostas.
Existente principalmente em peixes e frutos de mar, o iodo é a
matéria-prima básica para a tiróide fabricar hormônios. Na carência do
nutriente, ela não trabalha direito. Em situação extrema, o adulto tem
bócio e a criança, deficiência mental. Não é à toa que a Organização
Mundial de Saúde (OMS) recomenda universalmente adicioná-lo ao sal de
cozinha, pois o iodo é raro na natureza. A dose indicada é 20 a 60
miligramas de iodo por quilo de sal.
No Brasil, de 1998 a 2003, se colocaram de 40 a 100 mg/kg. Trabalho
realizado na época com 2.160 crianças de várias regiões constatou, por
meio de exame na urina, que 69% estavam ingerindo acima de 300
microgramas de iodo/dia, quando o recomendado pela OMS é de 100 a 300
microgramas/dia. Foi um sinal vermelho, mas hoje já está no verde.
Nenhuma criança tinha alteração da função da tiróide.
TUDO EM MARCHA LENTA
Independentemente da causa, a redução dos hormônios tiroidianos no
sangue leva aos poucos o organismo inteiro a “andar” em marcha lenta.
Eis o que pode provocar na pessoa afetada:
* Cansaço, desânimo, com fraqueza.
* Lerdeza para reagir às situações do cotidiano.
* Raciocínio moroso, concentração difícil e memória ruim.
* Sonolência durante o dia.
* Dores nas juntas.
* Sensação de frio quando as outras pessoas sentem calor.
* Pálpebras e rosto inchados ao amanhecer.
* Cabelos ressecados, quebradiços, que caem mais do que o habitual.
* Unhas quebradiças.
* Pele muito ressecada e grossa.
* Prisão de ventre.
* Irritação.
* Pele amarelada ou alaranjada.
* Alteração na menstruação, principalmente com aumento do
sangramento.
* Surgimento ou agravamento da depressão.
* Aumento da taxa de colesterol.
* Diminuição do apetite.
* Ganho de peso (por retenção hídrica e não por aumento de gordura) ou dificuldade de perdê-lo.
* Voz rouca.
* Aumento do tamanho da língua.
CLÁSSICO OU SUBCLÍNICO?
“Hoje, raramente atendemos hipotiroideo com tudo isso junto”,
salienta Romaldini. É o hipotiroidismo clássico, ou manifesto.
Usualmente, o diagnóstico é feito numa fase mais precoce, e o paciente
apresenta apenas alguns dos sintomas acima, que, aliás, são comuns a
diversas condições, como anemia, depressão, stress e menopausa.
Já o hipotiroidismo subclínico é, em geral, um achado laboratorial.
As sociedades de ginecologia e endocrinologia preconizam o TSH para
mulheres após os 40 anos, os médicos solicitam-no e o resultado dá entre
4,5 a 10 miliunidades/litro. Ou a pessoa refere cansaço que não
consegue explicar direito, o médico pede o teste e o resultado vem
também nesse intervalo.
O TSH, vale relembrar, é o exame para saber como a tiroide está
funcionando. O normal é ter de 0,3 a 4,5 miliunidades de TSH por litro
de sangue. Acima de 10, considera-se hipotiroidismo. De 4,5 a 10
miliunidades é a faixa do hipotiroidismo subclínico.
Justamente a que, neste momento, intriga médicos aqui e no exterior,
que se perguntam: será essa ligeira elevação já a doença? Será que ela
piora a qualidade de vida? Será que esse cansaço vago decorre de stress
ou já é um sintoma da disfunção mínima da tiroide? Pesquisas em
andamento vão dar resposta a essas questões nos próximos anos.
TSH, EXAME-CHAVE
O diagnóstico de hipotiroidismo é feito através de dosagens
hormonais. Na maioria das vezes basta o TSH. Para facilitar a vida,
pode-se dosar no mesmo dia o T4 livre.
Mas o TSH é o exame-chave. Seu nível aumenta ou diminui 100 vezes a
cada mínima mudança do hormônio T4, portanto é o primeiro a detectar
qualquer alteração de função da tiróide.
“Nos resultados normais, pode-se parar por aí”, assegura Vieira. Nos alterados, devem ser feitos mais dois testes:
1) T4 livre, particularmente útil no diagnóstico do hipotiroidismo
subclínico. O T4 livre normal combinado a TSH pouco elevado indica
disfunção mínima da tiroide.
2) Anticorpos antitiroide, para identificar a causa.
Resultado positivo é forte indício de tiroidite de Hashimoto, o que
significa sete vezes mais risco de o hipotiroidismo progredir. Logo,
esse exame pesa bastante na decisão de tratar.
ACIMA DE 10, MEDICAR
É consenso entre os especialistas: pessoas com TSH acima de 10 devem
ser tratadas. Objetivo: aliviar e/ou evitar sintomas do hipotiroidismo, e
principalmente prevenir suas consequências cardiovasculares e
psiquiátricas.
“O hipotiroidismo está associado a aumento de colesterol, favorecendo
aterosclerose e infarto do miocárdio”, justifica Romaldini. “Também
pode alterar o humor, contribuindo para a depressão.”
A terapia consiste em tomar diariamente, e para o restante da vida,
comprimidos de levotiroxina (há várias marcas comercializadas no
Brasil). É hormônio T4 sintético. Não cura o hipotiroidismo, apenas
substitui o que a tiróide doente não está produzindo em quantidade
suficiente. A melhora dos sintomas é lenta, podendo levar meses se eles
forem intensos.
OBSERVAR VERSUS TRATAR
Já o tratamento do hipotiroidismo subclínico é controverso. Alguns
médicos tratam toda pessoa com 4,5 de TSH. Já a conduta do Ambulatório
de Tiroide da Unifesp é não tratar paciente com TSH entre 4,5 e10, salvo
se tiver queixa importante ou fator de risco associado. E, a cada seis
meses, o paciente passa por nova avaliação. Se alterar o TSH ou o quadro
clínico, inicia-se o tratamento.
Ou seja, deve-se acompanhar e agir na hora certa em cada caso. “O
motivo não é econômico”, frisa Gilberto Vieira. “É para evitar a
medicalização desnecessária.”
Na verdade, são várias as razões contra o tratamento indiscriminado de pessoas com TSH pouco elevado:
1) O tratamento precoce não previne a destruição da tiróide, pois não
age na causa. A doença propriamente dita continua evoluindo. É uma
terapia substitutiva, tal como a insulina para diabéticos.
2) Parte dos pacientes tem elevação circunstancial do nível de TSH, normalizando naturalmente depois.
3) A doença tem evolução lenta. Dos pacientes com hipotiroidismo
subclínico, 2% a 5% por ano progredirão para o hipotiroidismo manifesto.
A alguns isso acontecerá no ano seguinte. A outros, 10, 15 ou 20 anos
depois. Logo, tem gente que tomará remédio por tempo prolongado sem
precisar.
4) Avaliação das principais pesquisas feitas no mundo sobre
hipotiroidismo subclínico concluiu recentemente que não há evidências
científicas suficientes para recomendar o seu tratamento de rotina.
5) O tratamento pode causar hipertiroidismo. E hipertiroidismo
provoca fibrilação atrial (batimentos anormais do ritmo cardíaco), o que
ocasiona infarto do miocárdio e acidente vascular cerebral, além de
levar à osteoporose.
“É quase impossível manter os hormônios tiroidianos em níveis
adequados no sangue quando o TSH está em 4, 5 ou 6”, alerta Romaldini.
“Por isso, em pacientes com 4 a 8 de TSH, é preferível acompanhar em vez
de tratar, a menos que ele tenha fator de risco associado, como aumento
do colesterol total e da fração LDL (o ‘mau’ colesterol), angina,
doença do pânico ou depressão que não melhora com antidepressivos,
diminuição de memória e de concentração.”
A propósito, muitíssima atenção: “A grávida hipotiroidea, mesmo
subclínica, precisa ser sempre tratada”, avisa Vieira. A tiroide do feto
só começa a funcionar entre a 12ª a 15ª semana de gestação, fase em que
depende exclusivamente dos hormônios tiroidianos passados pela mãe. Aí,
o hipotiroidismo materno pode afetar o cérebro do bebê, comprometendo o
seu desenvolvimento neuropsicomotor.
PARTICIPE DA DECISÃO
Provavelmente a esta altura, você deve estar se perguntando: afinal, quem está sujeito a ter hipotiroidismo?
Certamente têm mais risco as pessoas com história familiar de doença
tiroidiana, quem tem mais de 60 anos e as mulheres. “Se sentir cansaço,
desânimo ou depressão que não consegue explicar direito, consulte o seu
médico”, orienta Romaldini. “Pode ser que não seja stress ou excesso de
trabalho, mas hipotiroidismo.”
Se porventura o TSH der pouco alterado, lembre-se de que cada caso é
rigorosamente um caso. Participe da decisão de iniciar ou não a
medicação de imediato. O tratamento é para a vida toda.
“Tem muita gente sendo rotulada de hipotiroidea desnecessária e
equivocadamente”, adverte Vieira. “Está havendo excesso de diagnóstico e
de tratamento. Por trás, está a pressão dos laboratórios farmacêuticos
para vender mais hormônio tiroidiano sintético.”
Cuidado, portanto. Qualquer opção exige acompanhamento periódico,
pois a tiróide muda. O hipotirodismo, além de doença do momento, é um
dos negócios da hora.
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PS1 do Viomundo: A informação de que hipotiroidismo não causa obesidade consta do livro
Saúde — A Hora é agora, do qual, eu Conceição Lemes, sou coautora. O
professor Milton de Arruda Martins, titular de Clínica Médica da
Faculdade de Medicina da USP, e o doutor Mario Ferreira Júnior,
responsável pelo Centro de Promoção da Saúde do Hospital das Clínicas de
São Paulo, são os outros coautores. Entrevistei 70 profissionais de
saúde entrevistados, principalmente do HC-FMUSP, para fazer este
livro.
PS2 do Viomundo: O doutor Gilberto Vieira, da Unifesp, é corinthiano. Roxo.
PS3 do Viomundo: Infelizmente, médicos
desatualizados contribuem para a disseminação da ideia errada de que o
hipotiroidismo causa obesidade. Os dois médicos entrevistados — os
doutores Gilberto Vieira e João Hamilton Romaldini são referência
nacional na área. E tudo o que eles disseram sobre hipotirodismo é
conhecimento baseado nas mais recentes evidências científicas.
PS4 do Viomundo: Os médicos entrevistados não
disseram que Ronaldo mentiu sobre o diagnóstico nem que ele não tem
hipotiroidismo. Apenas que, do ponto científico/médico, as declarações
dele sobre hipotiroidismo-obesidade e remédio para hipotiroidismo-doping
estão equivocadas.
PS5 do Viomundo: A título de hipótese, o caso de
Ronaldo seria hipotiroidismo subclínico, leve. Se ele tivesse TSH acima
de 10, estaria obrigatoriamente se tratando, para baixar esses níveis a
títulos normais. Do contrário, não aguentaria jogar. E se jogasse,
correria o risco de infarto. Nenhum médico permitiria isso.
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