Medicina & Bem-estar
| N° Edição: 2332
| 01.Ago.14 - 20:00
| Atualizado em 28.Dez.14 - 22:41
Depois de três anos, drogas à base de
anfetaminas indicadas para perder peso podem voltar ao mercado
brasileiro. Médicos e pacientes se dividem quanto à sua eficácia e
segurança. Enquanto isso, a ciência prepara uma nova safra de medicações
Cilene Pereira (cilene@istoe.com.br) e Mônica Tarantino (monica@istoe.com.br)
Falta muito
pouco para que os remédios de emagrecimento à base de anfetaminas voltem
ao mercado brasileiro. Com sua fabricação e comercialização proibidas
desde 2011 por determinação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(Anvisa), resta apenas uma votação, no Senado, para que eles possam
novamente ser consumidos por pacientes brasileiros. Trata-se da última
etapa de tramitação do projeto de decreto legislativo apresentado pelo
deputado Beto Albuquerque (PSB-RS) que susta a proibição da agência.
Ele já foi aprovado na Câmara e na Comissão de Constituição e Justiça.
Dos 27 senadores, apenas seis se posicionaram contrários à liberação
dos medicamentos. E a presidenta Dilma Rousseff não poderá se interpor,
já que um decreto legislativo não pode ser vetado pela Presidência da
República. No mesmo projeto está também o fim das restrições impostas à
venda da sibutramina, outro medicamento usado no tratamento da
obesidade. Desde a resolução da Anvisa, a droga só pode ser
comercializada se houver, entre outras exigências, a apresentação de um
termo de responsabilidade assinado pelo médico e pelo paciente.
O provável retorno desses remédios está
dividindo os médicos em um debate acalorado. De um lado estão os que
apoiam a proibição e que, por isso, se encontram preocupados. Eles têm
uma lista de argumentos para sustentar suas posições. Em relação aos
derivados de anfetamina, o primeiro deles é o de que, por se tratar de
medicações antigas, não há estudos confiáveis, feitos no chamado padrão
ouro da ciência, que ratifiquem sua eficácia e segurança. “Não são
pesquisas capazes de formar evidência científica, especialmente no que
diz respeito à eficiência a longo prazo e à segurança”, afirma o
cardiologista Flávio Fuchs, da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul. Entre os problemas elencados, estão o risco de dependência e de
surgimento de doenças cardiovasculares e hipertensão pulmonar.
Outra crítica é a de que a perda de peso
seria insignificante e temporária. “A efetividade a longo prazo dos
inibidores de apetite é na melhor das hipóteses questionável”, afirma o
pesquisador Francisco Paumgartten, da Fundação Oswaldo Cruz, do Rio de
Janeiro. “E na maioria dos casos o emagrecimento é revertido quando a
droga é interrompida.” Na opinião da nutricionista funcional Luciana
Harfenist, do Rio de Janeiro, nesse aspecto há outro agravante.
“Pacientes que consomem inibidores de apetite, na sua maioria, não
aprendem a comer, não nutrem adequadamente seu organismo”, diz.
LIBERAÇÃO
Os endocrinologistas Maria Edna e Alfredo Halpern lutam para
que os derivados de anfetamina e a sibutramina sejam acessíveis.
Eles consideram as medicações importantes para parte dos pacientes
Em relação à sibutramina, os críticos
ressaltam que a droga, bem mais moderna do que os anfetamínicos, foi
objeto de estudos, mas o problema é que uma das principais investigações
concluiu que não vale a pena usá-la. Eles se referem ao levantamento
Scout (Sibutramine Cardiovascular Outcome Trial). Foram acompanhados
cerca de dez mil pacientes por cinco anos. As perdas de peso registradas
foram modestas. Pior do que isso, a pesquisa apontou risco mais elevado
de infarto e acidente vascular cerebral entre obesos que utilizavam o
remédio do que entre os que não o tomavam.
Em favor da liberação advogam os
especialistas no tratamento da obesidade, especialmente os
endocrinologistas. “Nós, especialistas em obesidade, discutimos a
questão a fundo e fornecemos dezenas de argumentos sobre a necessidade
desses remédios”, relata o endocrinologista Alfredo Halpern, da
Universidade de São Paulo (USP). O resultado da compilação de estudos e
razões dos médicos foi consolidado em um documento assinado pela
Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome
Metabólica (Abeso) e pela Sociedade Brasileira de Endocrinologia e
Metabologia (Sbem). “Porém a agência não nos deu ouvidos e tomou uma
decisão autoritária. Agora, um projeto de decreto legislativo irá passar
por cima da decisão da Anvisa”, pontua Halpern.
Exageros na dose
O médico é um dos pesquisadores mais
experientes na avaliação do desempenho de drogas contra obesidade,
muitas testadas no serviço que dirige na USP. “Há trabalhos suficientes
mostrando seus benefícios quando bem indicadas e ministradas na dose
certa”, afirma. Segundo ele, há obesos que só respondem aos derivados de
anfetamina, conhecidos por proporcionar perda de peso rapidamente.
Halpern diz ainda que reações indesejáveis como euforia, delírios ou
surtos de esquizofrenia paranoide, como menciona a Anvisa, são vistas
apenas em pessoas com histórico de doença psiquiátrica ou de abuso de
substâncias. Nesse aspecto, outro problema são os exageros na dose
cometidos em formulações aviadas em farmácias magistrais e o uso
recreacional desses remédios, dois fatores que também teriam
influenciado a sua retirada do mercado. “Neste item, o problema foi, e
continua sendo, a falta de uma fiscalização efetiva”, diz Halpern. A
proibição, aliás, não encerrou o assunto. Ainda existem o comércio
ilegal de antigos estoques e farmácias magistrais que aviam fórmulas com
anfetamínicos clandestinamente.
Necessidade vital Uma das observações
contrárias aos remédios que mais incomodam os especialistas é a de que
eles seriam dispensáveis. “A obesidade é uma doença crônica. E para
algumas pessoas o controle alimentar é muito difícil sem medicamentos”,
diz a endocrinologista Maria Edna de Melo, da diretoria da Abeso. O
endocrinologista Tércio Rocha, do Rio de Janeiro, partilha da mesma
opinião. “A volta da comercialização no Brasil dessas medicações é
imensamente necessária, pois vários pacientes precisam delas”, diz.
Concorda com ele o endocrinologista João Lindolfo, especialista pela
Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia. “Tem de haver
controle, mas as restrições precisam diminuir”, defende.
Na opinião de Maria Edna, a compreensão
desatualizada e limitada das características e consequências da doença
está também na origem da ausência de drogas para tratar o problema na
rede pública. “Não há nenhum remédio aprovado com essa finalidade para
quem é atendido no SUS. A Anvisa acredita que somente a mudança na
alimentação e atividade física já são suficientes”, diz.
CRÍTICOS
Para o cardiologista Flávio Fuchs (acima), não há evidência científica da eficácia
e segurança do uso dos derivados de anfetamina. Já o pesquisador Paumgartten
afirma que a perda de peso proporcionada pelos remédios é pequena e temporária
Certamente é urgente encontrar métodos mais
eficientes de combate à obesidade. No Brasil, metade da população está
acima do peso e os que já atingiram a classificação de obesos somam 30
milhões de pessoas. Trata-se de um contingente extremamente preocupante,
considerando que o excesso de peso está por trás da alta incidência de
doenças como a diabetes tipo 2, de infartos e de acidentes vasculares
cerebrais.
O difícil neste debate é apontar com
certeza quem de fato se beneficiaria da volta das medicações. Ao longo
da reportagem, por exemplo, é possível ler histórias de quem se deu
muito bem, de quem se deu muito mal e para quem os remédios não fizeram
diferença na briga contra o peso. Parte dos médicos defende que os
medicamentos, na verdade, quaisquer que sejam eles, são coadjuvantes, e
não protagonistas nessa batalha. “O tratamento medicamentoso da
obesidade deve ser precedido por modificação do estilo de vida. Isso
deve ser sempre a pedra fundamental da terapia”, afirma o clínico geral
André Salgado, do Rio de Janeiro. Os endocrinologistas, porém, afirmam
que há pacientes que não emagrecem sem remédio.
Paralelamente à discussão sobre a
necessidade de utilização das medicações, há outro aspecto que chama a
atenção nesse assunto. Em Brasília, onde trafega o projeto que propõe
sua liberação, pairam suspeitas sobre a iniciativa. Estranha-se, por
exemplo, a celeridade com que o projeto está sendo analisado, algo
incomum mesmo em tempos normais, que dirá em época pré-eleitoral, quando
o Congresso normalmente para. Enquanto milhares de proposições demoram
quatro anos, em média, para passar pelo crivo do plenário da Câmara, o
projeto de decreto legislativo do parlamentar Beto Albuquerque precisou
de apenas oito meses para ser estudado.
Existe a suposição de que por trás da
urgência está o interesse da indústria farmacêutica e das farmácias
magistrais em explorar o rentável mercado dos medicamentos
antiobesidade. O segmento farmacêutico acompanha de perto os movimentos
referentes ao projeto e aciona seus principais interlocutores no
Congresso para derrubar a resolução da Anvisa o mais rápido possível.
Nos bastidores, congressistas contam que foram procurados por emissários
de empresas farmacêuticas condicionando doações para a campanha
eleitoral deste ano à rapidez da votação do projeto. “Respeito a opinião
dos profissionais que consideram essencial a comercialização desses
remédios. Mas pergunto: até que ponto não existe também o interesse de
grandes conglomerados farmacêuticos que querem expor a saúde dos
brasileiros?”, diz o senador Humberto Costa (PT-PE), contrário ao
retorno dos medicamentos.
Situação no mundo
Por enquanto, ainda sem a data da votação
definida, a Anvisa adota a cautela. A agência comunica que não decidiu
quais medidas tomará se o projeto for aprovado, como tudo indica. Porém,
de antemão, afirma que a medida desconsidera a atribuição primária da
agência, que é justamente a de arbitrar e decidir quais produtos de
saúde podem ou não entrar e permanecer no mercado.
Em outras partes do mundo, a oferta de
anfetamínicos e da sibutramina parece mais bem resolvida do que no
Brasil. Nos Estados Unidos, é permitida a venda de derivados de
anfetaminas como a anfepramona e a fentermina. Eles são aprovados para
serem usados para perda de peso rápida, em poucas semanas. Em 2011,
inclusive, a fentermina foi o remédio mais prescrito para emagrecimento
naquele país, segundo a Food and Drug Administration (FDA), a agência
americana responsável pela liberação de remédios. Já a sibutramina foi
retirada do mercado pelo fabricante, o laboratório Abott, após
recomendação do FDA. Na Europa, a situação em relação aos anfetamínicos é
um pouco diferente. “Alguns desses medicamentos antigos ainda são
comercializados em escala reduzida em determinados países europeus”,
explica Francisco Paumgartten, da Fiocruz. “A European Medicines Agency
tentou retirá-los do mercado com a fundamentação de ‘falta de eficácia’
mas a tentativa foi frustrada”, diz ele. Em relação à sibutramina, a
agência europeia que regula medicamentos informou à ISTOÉ que recomendou
a suspensão das autorizações para venda de produtos contendo a
substância nos Estados membros em 2010, após concluir que os riscos são
maiores do que os benefícios. No fim, a Abott decidiu tirar o remédio de
todo o mercado mundial. Hoje, em lugares como o Brasil, a substância é
encontrada em drogas genéricas ou em medicações manipuladas.
A discussão ferrenha sobre a oportunidade
de usar os anfetamínicos e a sibutramina evidencia quanto a medicina
busca desesperadamente uma solução, uma pílula capaz de emagrecer e
produzir pouco ou nenhum efeito colateral. Trata-se de uma das maiores
ambições da ciência atualmente. Há várias opções em estudo (leia mais no
quadro ao lado), mas mesmo os mais otimistas sabem que o caminho será
longo até que uma delas seja finalmente disponibilizada.
Indicação informal
Enquanto isso, médicos e pacientes recorrem
principalmente a medicamentos desenvolvidos para outras finalidades,
mas que, na prática, mostraram-se eficazes também no controle de peso. É
o chamado uso off label (fora do rótulo). É assim, por exemplo, com o
topiramato, aprovado contra enxaqueca e compulsão, mas que ajuda a
conter o impulso de comer em uma parcela dos obesos. A mesma situação
ocorre com alguns antidiabéticos de última geração que tornam mais lento
o esvaziamento gástrico e agem na sinalização da saciedade enviada ao
cérebro. São, sem dúvida, esforços válidos para tentar conter o avanço
de um dos maiores perigos à saúde já conhecidos.
Colaborou Josie Jerônimo
Foto: Nicolas Bets/Getty Images, Kelsen Fernandes, Gustavo Scatena –
AG.ISTOÉ; Stefano Martini, Marcos Nagelstein; Bruno Poppe, Pedro
Dias/ag. istoé; Marcos Nagelstein
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