Para a jornalista inglesa Felicity Lawrence, a indústria da alimentação transformou tanto a nossa comida que mal sabemos o que estamos ingerindo
por Eduardo Szklarz
A
jornalista inglesa
Felicity Lawrence percebeu que havia algo errado com seu gato. O bichano não parava de engordar. Ela resolveu saber por que e descobriu que era culpa da ração, que levava quase os mesmos ingredientes das comidas prontas do supermercado: farinha de milho, derivados de soja, arroz, gordura vegetal hidrogenada, concentrado de proteínas, beterraba desidratada, um plus de ômega 3 e um delicioso sabor de atum.
Gatos de antigamente não comiam essas coisas – e nós tampouco. Felicity resolveu investigar o tema e descobriu que a incidência de
diabetes em
gatos cresce pelo mesmo motivo que a
diabetes em seres humanos. “Nossa
dieta mudou completamente nos últimos 50 anos. Parece que nunca tivemos tanta escolha, mas na verdade um pequeno grupo de ingredientes – alguns nem usados como
comida no passado – está presente em quase tudo o que comemos”, diz Felicity. “Mais de 60% da
comida processada na Inglaterra contém soja em alguma forma, de queijos a sorvetes, de biscoitos a barras de cereal.” Segundo ela, acreditamos na aura saudável dos
nutrientes que surgem todo dia nas embalagens, sem saber que essa
dieta industrial tem provocado
obesidade,
diabetes, câncer e doenças do coração.
Como foi que nos tornamos gordos?
A
obesidade pode ter várias causas, como a predisposição genética, mas certamente a combinação entre a
dieta industrializada e a queda na atividade física desempenha um enorme papel. Isso aconteceu sobretudo depois da 2ª Guerra Mundial, grandes companhias começaram a produzir
comida barata e pouco nutritiva. Nessas décadas, os engenheiros de alimentos ficaram mais preocupados com o barateamento dos produtos e dos processos de produção que com a saúde dos consumidores. O que comemos hoje é resultado disso. Alimentos processados têm alto teor de energia, baixo valor nutricional e não produzem uma sensação de saciedade. Você come e, como não se sente satisfeito, vai para outra porção. Assim acaba ingerindo grande quantidade de caloria em pouco tempo.
O que provocou essa transformação na nossa forma de comer?
A correria do trabalho contribuiu, pois não temos muito tempo para fazer nossa própria
comida. Mas talvez o fator mais importante seja o sistema adotado pela indústria de alimentos, que nos impede de saber como as comidas são produzidas. Quando vai a um supermercado, você encontra pedaços de carne, frango e porco, tudo empacotado, e não tem nenhuma idéia de onde vem tudo aquilo. Na verdade, comemos os mesmos ingredientes, mas achando que são alimentos diferentes. Nas últimas décadas, o jeito como consumimos gordura mudou drasticamente. Antes, sabíamos que estávamos ingerindo uma
comida gordurosa. Hoje, a indústria de alimentos tornou a gordura algo invisível. Com o advento da gordura hidrogenada, um
alimento novo que de repente apareceu em centenas de produtos, compramos alimentos sem saber o que eles realmente são. E quem decidiu isso não fomos nós, mas os custos, a facilidade de produção e até a política internacional.
Como assim?
O milho, por exemplo, está em quase um terço das comidas processadas no Reino Unido. A soja e seus derivados são usados em dois terços delas. Farelo de soja, proteína de soja, proteína vegetal hidrolisada, proteína texturizada de soja, óleo de soja e emulsificante lecitina de soja estão em barras de cereais, cornflakes, biscoitos, chocolates, sucos, salsichas, carnes processadas, margarinas, sorvetes, maioneses, queijos, massas de bolo e muitas outras comidas. O óleo de soja, um
alimento que mal existia nos EUA no começo do século 20, é hoje responsável por 20% das calorias que os americanos ingerem. E isso vem de só 10% da soja do mundo, já que os outros 90% são usados como
alimento em granjas. Também encontramos açúcar em suas várias formas (sacarose, oligofrutose, entre outras), farinha de arroz, óleo de milho, óleo de palma e diversos tipos de gorduras. Para a indústria da
comida, essa é uma trilha ideal: começamos comendo papinha de bebê, passamos aos cereais empacotados e daí a comidas prontas. Ou seja, os mesmos ingredientes, só que em formas diversas.
Por que a indústria usa tanto grãos como soja?
Nos últimos 50 anos, os governos implantaram fortes subsídios a certos produtos agrícolas, como milho, soja e açúcar – as chamadas commodities. O resultado foi que elas puderam ser produzidas e vendidas no mercado global a preços baixos. Foi fácil parar de vender vegetais frescos e começar a vender grãos, açúcares e gorduras em produtos manufaturados baratos. Com a atual elevação do valor da soja, temos um problema, porque boa parte da
comida processada depende dela.
A comida hoje provoca ansiedade ou prazer? Ansiedade, e isso se deve, primeiro, porque nos desconectamos da forma como a
comida é feita. Estamos muito confusos sobre o que é saudável e o que não é. Recebemos recomendações de todos os lados, muitas vezes determinadas por campanhas de marketing. Um dia temos que parar de comer gorduras saturadas, no outro gorduras trans, e assim por diante. A confusão é tanta que pedimos conselhos de empresas antes de comer, o que gera conseqüências desastrosas para a nossa saúde.
Quais?
O aumento do consumo de
comida processada para bebês, por exemplo. Os pais preferem comprá-la porque já não confiam em si próprios. Acham que não podem fazer papinhas do jeito certo. Durante séculos, as pessoas compartilharam os pratos com os filhos, mas agora se submetem a instruções pseudocientíficas antes de decidir o que dar a eles. Também substituem leite materno por leite industrial. Os sabores do leite materno estimulam a bebê a buscar uma
dieta variada de alimentos nos anos seguintes. Isso é fundamental para que ela desenvolva uma atitude saudável diante da
comida. Do mesmo modo, a margarina já foi indicada como uma opção mais saudável que a manteiga. Hoje, acredita-se no contrário.
Qual o problema dos cereais que comemos no café-da-manhã?
São comidas tipicamente processadas. Quando o grão inteiro passa pelo sistema de processamento pesado, muitos de seus minerais e vitaminas são retirados – porque estragariam antes da venda – ou destruídos pelo calor. No final, as indústrias colocam de volta, para compensar, algumas vitaminas e minerais – que viram campanha de marketing do tipo “enriquecido com vitaminas”, “com ômega 3” ou “com ferro e cálcio”. Mas nada disso é comparável ao valor nutritivo que o grão inteiro tinha no início. Além do menor valor nutritivo, esse é um jeito muito caro de comer. Mais barato é comprar o grão inteiro e fazer o café-da-manhã com ele.
É claro que esse sistema tem um custo social. De um lado, está a conseqüência para os consumidores – as taxas de
obesidade aumentam em todo o mundo. De outro lado, está o interesse dos produtores. Para esse sistema funcionar, é preciso haver uma produção maciça de matéria-prima. Em diversos países, a zona rural virou um campo de produção para a indústria alimentícia. O Brasil é o melhor exemplo. Eu visitei a Amazônia e vi pessoalmente o que acontece. As áreas do sul da Amazônia que eram imensas florestas hoje são enormes plantações de soja.
Você diz que esse modelo de produção foi exportado para o mundo pelos EUA e pelas grandes corporações. Os poderosos são os únicos que nos fazem comer assim?
Não creio que exista uma conspiração. Mas foi por causa dessa estrutura que embarcamos num caminho pouco saudável. Muita gente sofre de doença cardíaca, câncer,
diabetes,
obesidade e outros problemas relacionados com a
dieta. As indústrias de
alimento lucram dizendo que estão “agregando valor”, mas na verdade agregam valor aos seus acionistas.
De que forma?
Com um simples grão, elas podem ganhar certa quantidade de dinheiro. Mas podem ganhar mais quando “agregam valor”. Ou seja: usando esse grão para alimentar animais e vendê-los na forma de carne. E podem ganhar ainda mais se processam essa carne para vender
comida pronta. Quanto mais agregam valor, mais tiram os
nutrientes – e maiores são as suas margens de lucro.
Por outro lado, muitos afirmam que o sistema industrial foi essencial para alimentar as populações maiores nas últimas décadas. Não concorda?
Esse é um dos argumentos. Mas a pergunta é: esse sistema está alimentando bem as pessoas? Segundo diversas fontes, há 1 bilhão de pessoas com sobrepeso no mundo, e muitas sofrem doenças relacionadas com a má
alimentação. Ao mesmo tempo, existem também 850 milhões de pessoas que ainda passam fome todos os dias. Parece que esse sistema não está alimentando bem o mundo, e sim concentrando os lucros nas mãos de poucos e a gordura no corpo de muitos.
Alguns especialistas dizem que rotular as comidas como boas ou ruins não causa mais distúrbios alimentares, como anorexia? É verdade?
Podemos falar de
alimentação saudável com regras bem simples. Elas só se tornam difíceis quando resolvemos buscar novos produtos que prometem resolver todos os nossos problemas.
Regime de engorda
Para Felicity, esta é a receita que está tornando o mundo obeso
Gordura
A criação da gordura vegetal hidrogenada tornou possível misturarmos gordura com doces, como no sorvete. A popularização dos novos tipos de gordura, como a trans, aconteceu antes de sabermos o efeito que eles teriam no corpo.
+
Soja
Apesar de ser um
alimento raro no mundo ocidental até a 2ª Guerra Mundial, ela está hoje em 60% das comidas industrializadas da Inglaterra. Sem contar as carnes vindas de animais alimentados com soja, como a carne de frango.
+
Açúcar
Não pense que ele está apenas em doces e chocolates. Quase todos os alimentos industrializados de hoje levam açúcar, como pizzas, hambúrgueres, salsichas e até alguns tipos de cerveja, em substituição ao malte.
=
Resultado
Mais de 1 bilhão de pessoas têm sobrepeso no mundo. O problema não é só de países ricos, como os EUA. No Brasil, há mais pessoas gordas que famintas. São 27 milhões de adultos com sobrepeso – a maioria deles das classes mais pobres.
Felicity Lawrence
• É repórter especial do jornal inglês The Guardian, especializada em temas do consumidor.
• Ganhou prêmios investigando a relação da produção de alimentos com a mudança climática, as migrações em massa e a exploração da mão-de-obra.
• Nos anos 90, passou dois anos trabalhando com refugiados afegãos na fronteira com o Paquistão.
• Para escrever os livros, ela conversou com africanos que colhem tomate na Itália, ouviu agricultores poloneses e brasileiros de plantações de soja da Amazônia.
• Adora cozinhar receitas tradicionais inglesas para seus 3 filhos: peixe é o prato mais comum.
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