Em contraste com o variado cardápio dos ricos, escravos e pobres não tinham acesso à carne no Brasil Colônia.
Pedro Henrique Campos - 23/3/2009
- Frutas, verduras e grãos. À primeira vista, uma boa dieta,
típica de quem quer manter-se “em forma”, como se diz. O termo que
deveria estar entre aspas, contudo, é “quer”, pois ele faz toda a
diferença. No Rio de Janeiro de D. João VI, escravos mantinham uma dieta
muito próxima à dos vegetarianos – mas eram obrigados a isso, por não
terem acesso a quase nenhuma proteína animal.
Desde o tempo da colônia, muitos historiadores notaram que os hábitos
alimentares simbolizavam com perfeição nossa desigualdade social. As
pessoas mais ricas preferiam consumir alimentos estrangeiros,
especialmente os portugueses, como vinho, pão de trigo, azeite, vinagre,
azeitona e queijo. Já os escravos e homens livres pobres se viam
obrigados a comer produtos nacionais, como mandioca, feijão, milho,
peixe e frutas. Estava materializada na alimentação a distância que
separava os proprietários de terra e grandes comerciantes dos demais
grupos sociais.
No início do século XIX, o Rio era o principal centro urbano do Brasil.
Tinha o comércio mais movimentado e era o principal porto do mercado de
escravos. Além da sujeira das ruas, das vias estreitas e barulhentas,
era a quantidade de escravos o que mais saltava aos olhos de quem
visitava a cidade. A vinda da corte portuguesa, em 1808, aumentou
enormemente a demanda por cativos para servir à família real, aos
funcionários da Coroa e aos cortesãos. Os escravos chegaram a cerca de
60 mil, quase a metade da população urbana.
Com mais homens livres e escravos nas ruas, criaram-se dois grandes
problemas para os governantes. Em primeiro lugar, temia-se uma
“haitização” da capital, ou seja, uma grande rebelião nos moldes da que
dominou a colônia francesa do Haiti em 1791, levando à proclamação da
sua independência em 1804. O segundo medo era o do desabastecimento de
bens. Principalmente os alimentos.
O item mais escasso era também um dos mais elementares: a carne. O
produto era transportado para a capital na forma de animais vivos –
principalmente boiadas vindas das províncias de Minas Gerais e Rio
Grande do Sul (os gaúchos tinham o maior rebanho bovino do país) – ou
como carne-seca, em navios que costeavam o litoral, no chamado comércio
de cabotagem.
Com os bois vivos, preparava-se um tipo especial de carne, diferente da
carne-seca, que era mais salgada e durava mais. Os bois eram abatidos em
matadouro público (na Rua Santa Luzia, no bairro da Glória) e
encaminhados aos diversos açougues da cidade. Ali, as pessoas compravam a
carne e preparavam-na no mesmo dia, para que não apodrecesse. Era a
chamada “carne verde”: mais cara e consumida pelos grupos privilegiados
da sociedade: grandes comerciantes, fazendeiros e altos funcionários do
governo.
Além de escravos, a vinda de D. João VI ao Brasil atraiu também –
principalmente a partir de 1815, com o fim das guerras napoleônicas –
muitos cientistas, artistas e comerciantes europeus, que mantiveram
cartas e diários de viagem. Estes registros revelam que a questão dos
hábitos alimentares no Brasil causava grande estranhamento nos
viajantes. Eles criticavam o comportamento dos colonos à mesa, a não
utilização de talheres e a falta de respeito a etiquetas, inclusive
entre os mais ricos. Relatavam, enojados, que era um costume muito comum
comer com as mãos, usando apenas uma faca para auxiliar no corte de
algum pedaço de carne.
Os estrangeiros também notaram muitas diferenças entre a alimentação das
pessoas ricas, dos pobres e dos escravos. Segundo relato do pintor
francês Jean-Baptiste Debret (1768-1848), o horário das refeições
variava conforme a condição social. Enquanto os empregados e escravos
jantavam por volta das 14 horas, os proprietários e grandes comerciantes
faziam a refeição apenas às 18 horas. A sesta após a janta era comum,
mas também variava entre as classes: enquanto os ricos cochilavam de
duas a três horas, os mais pobres – justamente aqueles que trabalhavam –
dispunham de menos tempo para o descanso.
Alguns viajantes puderam presenciar as refeições de vários grupos
sociais, encontrando grande diferença no cardápio. Debret esteve na casa
de um rico comerciante e participou de um banquete, que era ali um
hábito usual. Ao descrever o evento, o pintor conta que na mesa havia um
“enorme pedaço de carne de vaca, salsichas, tomates, toucinho”. Depois
vinham “galinha com arroz” e “uma resplendente pirâmide de laranjas” –
tudo acompanhado de frutas e taças com água e vinho Porto e Madeira,
mantidas sempre cheias pelos escravos domésticos.
Os mais abastados comiam não apenas muita carne, mas em grande variedade
– boi, porco e ave. Já os homens pobres livres tinham dificuldades para
consumir proteínas animais. Debret nota que um pequeno comerciante
carioca comia apenas “um miserável pedaço de carne-seca” com farinha e
feijões. Robert Walsh, viajante inglês, relata que “o alimento do pobre é
o feijão-preto e a farinha de mandioca. O primeiro é sempre preparado
com toucinho e a mandioca é servida também com carne-seca”.
A situação dos escravos era ainda pior, tendo que lutar para conseguir
comer qualquer espécie de carne. Segundo Debret, viviam “disputando aos
animais domésticos os restos de comida”. Em regiões rurais, médicos
encontraram escravos que não comiam alimento animal havia anos. Eram
verdadeiros vegetarianos à força. Em busca de carne, alguns escravos
ficavam próximos ao matadouro, aguardando o momento em que as sobras
eram jogadas ao mar. Eles então mergulhavam nas águas da Baía de
Guanabara e coletavam os miúdos de boi, para fazer lingüiças e comer
junto com feijões.
Quando os senhores concediam carne a seus escravos, esta vinha em tão
pouca quantidade que muitas vezes era necessário transformá-la em sopa,
para que todos pudessem comer. Os cativos também buscavam outros tipos
de animais para completar sua dieta, atesta o inglês John Luccock: “tudo
quanto tem vida, exceto, talvez, alguns répteis, [...] e todas as
criaturas pareciam igualmente bem-vindas pelas classes baixas dos
nativos e pretos”.
Alguns escravos lançavam mão do roubo para conseguir pedaços de bife.
Quando os quartos de bois eram transportados do matadouro para os
açougues em carrinhos de mão, assaltavam o transportador para conseguir
sua pequena porção diária de alimentação animal. Quem mais recorria aos
assaltos eram os chamados escravos de ganho, que podiam se dedicar a
diferentes ofícios urbanos por conta própria, devendo pagar boa parte de
seu rendimento aos senhores. Não à toa, em 1808, D. João criou a
Intendência de Polícia da Corte, que, entre outras funções, tinha que
manter a “ordem” na cidade, evitando furtos e toda forma de organização e
preparação de uma rebelião escrava na nova capital do Império.
No livro Geografia da fome, escrito logo após a Segunda Guerra Mundial, o
médico e intelectual Josué de Castro (1908-1973) afirmou que era
possível dividir a humanidade entre os que não comem e os que não dormem
com medo dos que não comem. Assim vivia a população do Rio de Janeiro
na primeira metade do século XIX: em parte faminta, em parte
amedrontada.
Pedro Henrique Pedreira Campos é professor da Universidade Federal
Fluminense (UFF) e autor da dissertação Nos caminhos da acumulação:
negócios e poder no abastecimento de carnes verdes para a cidade do Rio
de Janeiro, 1808-1835 (UFF, 2007).
Saiba Mais - Bibliografia:
FRAGOSO, João Luiz Ribeiro. Homens de grossa aventura: acumulação e
hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de
Janeiro: Arquivo Nacional, 1992.
GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. 6ª. ed. São Paulo: Ática, 2001.
LINHARES, Maria Yedda Leite. História do abastecimento: uma problemática em questão (1530-1918). Brasília: Binagri, 1979.
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Tradições alimentares e culinárias. In:
Vida privada e quotidiano no Brasil na época de D. Maria I e D. João VI.
Lisboa: Estampa, 1993.
http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos/dieta-da-fome
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