Ronis Magdaleno Jr.I; Elinton Adami ChaimII; Egberto Ribeiro TuratoIII
IPsiquiatra,
psicanalista. Membro associado da Sociedade Brasileira de
Psicanálise de São Paulo. Doutorando em Saúde Mental, Departamento de
Psicologia Médica e Psiquiatria, Faculdade de Ciências Médicas,
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas, SP.
IIDoutor. Médico cirurgião, responsável pelo Serviço de Cirurgia Bariátrica, Hospital de Clínicas, UNICAMP.
IIIProfessor
livre-docente. Médico psiquiatra. Coordenador do Laboratório de
Pesquisa Clínico-Qualitativa, Faculdades de Ciências Médicas,
UNICAMP.
RESUMO
INTRODUÇÃO:
O grande número de pacientes submetidos a cirurgia bariátrica e que,
no pós-operatório, apresentam complicações psicológicas e
psiquiátricas justifica uma investigação pré-operatória acurada,
bem como categorização daqueles que se submeterão ao procedimento
cirúrgico, visando predizer eventuais complicações e individualizar
condutas psicológicas que possam favorecer a adesão do paciente. A
avaliação psicodinâmica pode fornecer elementos para tal
categorização e, assim, propor estratégias de abordagem pré e
pós-operatória eficazes. Procuramos identificar estruturas de
personalidade que possam orientar o acompanhamento pós-operatório,
bem como critérios auxiliares de inclusão/exclusão do procedimento
cirúrgico.
MÉTODO: Relato de pesquisa empírica
conduzida em atendimentos a pacientes submetidos a cirurgia
bariátrica, em grupo terapêutico aberto.
DISCUSSÃO:
Pacientes, depois de operados, podem passar por determinadas fases
de reestruturação emocional, como uma primeira fase de triunfo,
seguida de fase de risco para surgimento de quadros melancólicos e de
novas adições. Identificamos três categorias estruturais
psicológicas: estrutura melancólica, cujos pacientes parecem ter
maior possibilidade de desenvolver outras condutas aditivas no
pós-operatório, sobretudo alimentares, por não suportarem a
frustração pela perda; estrutura desmentalizada, na qual, por faltar
uma capacidade elaborativa, o paciente não consegue reorganizar-se
frente ao desafio de permanecer com peso controlado; e, finalmente, a
estrutura perversa, cujos sujeitos mantêm a programada perda de
peso, porém a custas de comportamentos que levam desconfortos à
equipe de saúde. Estabelecer categorias psicológicas classificatórias
pode ser crucial para que se proponham condutas no pós-operatório,
inclusive indicação de psicoterapia com especialista, visando a
individualizar o atendimento incrementando sucesso terapêutico
específico.
Descritores: Obesidade mórbida, cirurgia bariátrica, psicanálise, psicologia médica, psicoterapia de grupo.
Introdução
A
obesidade é uma doença crônica, de prevalência crescente, que, pelos
riscos associados, vem sendo considerada como um dos principais
problemas de saúde pública da sociedade moderna1. Além dos
problemas que afetam diretamente a qualidade de vida do portador, a
obesidade acarreta um aumento na incidência de vários outros quadros
patológicos.
Segundo relatório de 2006 da Organização Mundial de Saúde1,
"a obesidade alcançou globalmente proporções epidêmicas, com mais de
um bilhão de adultos com sobrepeso – pelo menos 300 milhões deles
clinicamente obesos – e é a maior responsável pelo aumento global de
desabilidades e doenças crônicas". Esses dados têm alertado as
autoridades e requerido grandes esforços por parte dos médicos e
outros profissionais de saúde no sentido de encontrar meios de
controle e tratamento para a obesidade.
O
grande problema dos tratamentos propostos para a obesidade mórbida é
a manutenção da perda do peso a longo prazo, e a cirurgia bariátrica
surgiu como ferramenta terapêutica eficaz, com reais possibilidades
de minimizar as falhas terapêuticas que ocorriam com os tratamentos
clínicos e nutricionais2,3.
A
cirurgia bariátrica foi recomendada durante a Conferência de
Desenvolvimento de Consenso do National Institutes of Health (NIH) de
19913, para indivíduos bem informados, motivados e com
obesidade de classe 3, que tivessem riscos operatórios aceitáveis, e
para aqueles com obesidade de classe 2 e condições pré-mórbidas de
alto risco. Aconselhou-se ainda, como fundamental, uma seleção
cuidadosa de candidatos à cirurgia por equipe multidisciplinar.
Segal & Fandiño4,
em concordância com a recomendação do NIH, avaliaram que "deve ficar
clara a necessidade de avaliação clínica, laboratorial e
psiquiátrica de forma regular nos períodos pré e pós-operatório",
mas advertem que tem se observado "um crescente abandono de critérios
psicológicos na seleção de candidatos a esses procedimentos,
provavelmente devido a ausência de instrumentos que permitam adequada
acurácia prognóstica, mostrando um julgamento clínico baseado em
evidências, cada vez menos objetivo".
Um levantamento feito por Appolinário5
mostra que estudos de seguimento pós-operatório de longo prazo de
pacientes submetidos a cirurgia bariátrica "reportaram várias
condições psiquiátricas como causas de morte no pós-operatório, sendo
o suicídio a principal ocorrência". Omalu et al.6
apresentam relatos de casos de suicídio de pacientes previamente
depressivos após a realização da cirurgia bariátrica. Esses
achados apontam para um desequilíbrio no jogo de forças psíquicas no
pós-operatório de tais sujeitos, e que os novos sintomas que surgem
são basicamente de caráter autoagressivo. Leal & Baldin7 apresentam relatos de casos onde um incremento da agressividade é referido pelas pacientes após a cirurgia.
A
preocupação desses autores é pertinente, posto que o procedimento
cirúrgico tem sido indicado e realizado com frequência cada vez
maior, e os cuidados com as consequências psicológicas e
psiquiátricas, ainda pouco conhecidas, dessa prática não estão bem
definidos.
Kalarchian et al.8,
após consistente investigação de transtornos psiquiátricos, tanto do
eixo I como do eixo II do Manual de Diagnóstico e Estatística de
Distúrbios Mentais, 4ª edição (DSM-IV)9, concluíram que
há "evidências contundentes de que transtornos psiquiátricos são uma
preocupação maior para a referida população de pacientes, não apenas
por serem relativamente comuns, mas porque também estão associados à
gravidade da obesidade e à condição de saúde funcional diminuída".
Magdaleno et al.10
demonstraram que, apesar das agudas modificações físicas e psíquicas
que a cirurgia bariátrica impõe, a aceitação social e o
sentimento de reencontro com sua identidade que estava encoberta pelo
excesso de gordura corporal, rompe o ciclo vicioso baixa autoestima –
incremento da ansiedade – impulso alimentar, com sensível melhora da
qualidade de vida dos pacientes10. Do ponto
psicodinâmico, a obesidade corresponde a uma estrutura como efeito
final de uma complexa trama de dificuldades psíquicas e sua interação
com o meio, que parte de problemas em fases precoces do
desenvolvimento do ser humano11,12.
Sabe-se, desde Freud13,14,
que, nas fases iniciais do desenvolvimento, o ódio da criança em
relação ao ambiente que a frustra é predominante, e os ataques que a
criança faz são intensos, podendo, caso a resposta do ambiente seja
desfavorável, danificar o sistema relacional dessa criança com os
outros, transtornando suas funções psíquicas básicas. A função
simbólica da incorporação expressa pela alimentação é, nesse período,
o modelo do qual a criança dispõe para relacionar-se com o mundo. A
partir de falhas nesse momento fundamental da construção do sistema
relacional da criança se estruturariam os sintomas mais primitivos
que irão se expressar, mais tarde, por comportamentos aditivos, entre
eles a obesidade mórbida. A incapacidade para criar um referencial
simbólico que seja suficiente para dar algum destino para a forte
pressão de impulsos primitivos deixa em aberto a via da descarga
corporal imediata destes.
Segundo Mahler11,
a identidade coesa da imagem corporal da criança fundamenta-se em
suas experiências iniciais nos campos sensorial e motor,
experimentados na relação fusional com a mãe. A criança aprende e
apreende o mundo por intermédio dessa relação. É uma fase na qual o
Eu se forma a partir da imagem da mãe. Winnicott15 chamou
esse momento do desenvolvimento de "fase do espelho", no qual a
criança deve poder reconhecer a si mesma no olhar da mãe, e a partir
daí iniciar o processo de formação de sua identidade. Falhas nesses
momentos iniciais da formação do Eu obrigam o bebê a se defender,
estruturando áreas deformadas no psiquismo que o incapacitariam para
lidar com a pressão vinda do corpo.
Ainda segundo Winnicott16,
no decorrer do desenvolvimento normal de um bebê, a "mãe devota
suficientemente boa" acolhe o bebê em seu "ambiente interno" e o
protege das tumultuadas tensões internas e externas, proporcionando,
assim, uma progressiva diferenciação do soma da criança em
direção a formação de um psicossoma, que fará a intermediação entre
as intensas exigências vindas de dentro e as exigências do mundo
externo. Assim, o psicossoma seria a estrutura que se forma a partir
da relação do corpo com suas pulsões e com o ambiente. Caso haja
alguma deficiência nesse processo de maturação, partes desse corpo
continuam funcionando de forma primitiva, sem intermediação
organizadora, ficando submetidas à descarga imediata da tensão.
Tustin12, a partir do estudo de crianças com autismo
psicogênico, postula a existência de áreas isoladas da personalidade
de adultos com funcionamento autista, que seriam a base estrutural de
transtornos mentais como as adições, transtornos alimentares, e
obesidade mórbida, entre eles.
O
problema relevante que se apresenta é que a retirada ou o
impedimento cirúrgico do sintoma cria um campo novo de estudo da
dinâmica biopsicológica do sujeito, pois a angústia que, de algum
modo, se resolvia através do sintoma tem essa via impedida – aguda e
artificialmente – de modo quase que absoluto após a cirurgia
bariátrica. Nosso objetivo é, a partir da compreensão das experiência
vividas pelos pacientes operados, definir algumas estratégias para o
manejo com os pacientes e com a equipe de profissionais de saúde
envolvida com a realização da cirurgia bariátrica.
Método
O
presente trabalho é resultado de reflexões clínico-psicológicas
provenientes do processo de aculturação do pesquisador em campo e
refere-se a um projeto de doutorado, em andamento, na área de saúde
mental, com sujeitos que foram submetidos a cirurgia bariátrica no
Serviço de Cirurgia Bariátrica do Hospital de Clínicas da
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas (SP). A
aculturação é procedimento usual em investigações qualitativas com
referencial humanístico e visa à construção de amostra representativa
em pesquisa no enfoque metodológico clínico-qualitativo17.
Este
artigo traz um relato de observação empírica no atendimento
psicológico a pacientes submetidos a cirurgia bariátrica no Hospital
de Clínicas da UNICAMP, a partir da aplicação do método clínico em
grupo terapêutico aberto. Entendemos por método clínico aquele que
procura se adequar aos problemas originados na observação clínica, a
partir de instrumentos relacionados à prática clínica, apoiado no
empirismo e na teoria ligada à atuação clínica18.
Assim, a origem do método é a atitude clínica do pesquisador, baseada
"na acolhida do sofrimento existencial e emocional do indivíduo alvo
dos estudos do pesquisador"17.
Arruda18
complementa que a atitude clínica, somada ao emprego do modelo
interpretativo das ciências humanas, possibilita a "compreensão, a
conexão de sentidos e a elaboração de conhecimentos". Tais autores
enfatizam, portanto, a possibilidade de um tratamento qualitativo ao
processo de pesquisa e à análise dos dados obtidos quando utilizamos o
método clínico19, e que, portanto, esse procedimento
situa-se entre as ferramentas científicas de investigação, sendo
válidos os resultados obtidos.
Utilizamo-nos
da observação clínica dos pacientes em grupos terapêuticos abertos.
Esses grupos são semanais, conduzidos por psicólogos do Ambulatório
de Cirurgia Bariátrica do Hospital de Clínicas da UNICAMP e
baseiam-se no convite e na participação espontânea dos pacientes que
foram submetidos à cirurgia. O enfoque terapêutico do grupo é
amplo, visando esclarecimentos a respeito de problemas práticos que
surgem no pós-operatório, identificação de conflitos, compreensão
da dinâmica psíquica dos pacientes e, por fim, a possibilidade de um
melhor manejo, pelos pacientes, do desafio que representa o
pós-operatório da cirurgia. Tem como objetivo principal situar os
pacientes na sua nova condição de vida e, com isso, melhorar a adesão
ao tratamento e instrumentalizá-los para manter a perda de peso.
A
partir do material que surgiu espontaneamente nos grupos, daquilo
que pudemos identificar da dinâmica grupal e na discussão com os
pares no Laboratório de Pesquisa Clínico-Qualitativa, pudemos
identificar alguns fenômenos que são constitutivos da realidade
psíquica de tais sujeitos e que acreditamos ser fenômenos comuns no
pós-operatório da cirurgia bariátrica.
Discussão
Sobre a experiência clínica no grupo de pós-operatório
...mas para nós isto tudo é muito difícil, pois agente pensa com o corpo.
O sujeito que chega ao grupo de pós-operatório já se apresenta de
algum modo como um vencedor. Venceu os desafios do período
pré-operatório, sobreviveu à cirurgia, suportou o primeiro mês de
operado, durante o qual a dieta líquida e pastosa é sempre vivida
como "um suplício a ser tolerado por uma causa maior" (frase de uma
das pacientes do grupo). Contudo, tal sensação de vitória, pouco a
pouco, vai sendo encoberta pela dureza da condição à qual esses
sujeitos se expõem. A alimentação, que era anteriormente vivida como
prazer incondicional, salvo por certa culpa pelas quantidades de
alimento ingeridas, passa a ser um problema a ser enfrentado: o
alimento "não desce bem", "enrosca", "fica parado", muitas vezes
provoca vômito, dumping. O prazer em comer diminui muito. E
agora, o que fazer com os indivíduos que tinham quase como prazer
exclusivo em suas vidas o ato de comer? O que fazer com os sujeitos
que "pensam com o corpo"?
É
a partir deste momento que começam a se apresentar, verdadeiramente,
para esses sujeitos os problemas que terão que enfrentar. Até o
momento da cirurgia, por mais que tenham sido orientados e
esclarecidos quanto às dificuldades, estavam, digamos, fascinados com
a certeza de resolverem todos os seus problemas a partir da cirurgia20,21, como que num passe de mágica.
Uma
situação clínica durante uma reunião do grupo pode ilustrar isso.
Numa das reuniões discutíamos, como é frequente nesses grupos, o
problema enfrentado pelo obeso em relação a sua dificuldade em se
adequar aos padrões sociais. No meio da conversa, surge o comentário
de um dos pacientes: "nosso problema são as catracas dos ônibus
coletivos, se não prestar atenção, fica-se entalado". Tal fala cria
um movimento imediato de concordância no grupo, que num clima de
brincadeira começa a contar anedotas sobre a vida de cada um em
relação às próprias experiências com catracas em ônibus. Certa
euforia se instala, misturada com um alívio, porque praticamente
todos agora podiam passar pelas referidas catracas dos ônibus.
O
terapeuta intervém e diz "mas agora que todos já passam nas
catracas, o que fazer?". Certo desconcerto se instala no grupo, uma
angústia volta a se fazer presente. A fala do terapeuta remete o
grupo à angústia subjacente ao triunfo que o paciente se esforça por
sustentar: a ideia de que a cirurgia poderia, por si só, resolver
todos os problemas da vida de cada um. A realidade, contudo, se
mostra muito diversa disso. A vida não se resolve ao passar,
metaforicamente, a catraca, ou concretamente, pela realização da
cirurgia. A fala do terapeuta tem como objetivo estimular o pensamento,
proporcionar a esses indivíduos que "pensam com o corpo" uma
possibilidade de "pensar com a cabeça", refletir, expandindo suas
capacidades elaborativas.
Ao
passar por esse marco, que é a cirurgia, inicia-se uma fase de
intensos desafios, talvez até maiores que antes, pois todo o sistema
defensivo que era mantido em torno da alimentação e da obesidade fica
impedido. O sujeito deve, rapidamente, aprender a lidar com suas
angústias através de outros meios. Isso nem sempre é possível,
deixando então abertos inúmeros canais patológicos. Pode-se dizer que
a obesidade, vivida por todos como um grande problema, é também, no
fundo, uma resposta para todos os problemas. Daí a conclusão
óbvia que aparece tantas vezes: resolvendo o problema da obesidade,
estará tudo resolvido. O momento em que tal fantasia se desvanece é
crítico, e observamos que o sujeito fica susceptível às complicações
emocionais e psiquiátricas que descreveremos a seguir.
As vivências psicológicas no pós-operatório
Uma
primeira reação que se apresenta na quase totalidade dos pacientes
é, como procuramos ilustrar com o material clínico acima, certo
"triunfar" sobre a condição anterior de obesidade. É como se todo o
problema houvesse sido derrotado pela cirurgia. Essa reação é
intensamente reforçada pela perda de peso visível, pelo reforço
positivo dado pela equipe, pelos familiares e pelos demais pacientes.
Esse é um primeiro tempo definido pela própria equipe e pelos
pacientes como de lua de mel, dentro do qual a perda de peso é
tão evidente e o reforço positivo da equipe e dos pacientes é tão
presente, que acaba compensando qualquer sofrimento. O paciente
sente-se na "vitrine da moda", e todo aquele sofrimento advindo da
exclusão social, da rejeição por ser gordo, da ferida narcísica que
representa um corpo fora dos padrões, de repente se reverte.
Contudo,
como toda lua de mel, tal período vai pouco a pouco terminando. No
lugar dele, vão aparecendo outros sentimentos, que por vezes "parecem
vir do nada": uma angústia, uma sensação de tédio indefinida, um
vazio, algo que fica faltando, sentimentos de tristeza, uma vontade
de ficar beliscando, o tempo todo, alguma coisa... mas ainda assim a
perda de peso continua visível, o trauma físico da cirurgia vai
cicatrizando, uma coisa equilibra a outra e a disposição de continuar
lutando permanece.
A
ameaça aparece quando a realidade de que o peso pode voltar a
aumentar, apesar da cirurgia, se impõe. É nesse momento – e aqui já
se passou 1 ano ou um pouco mais após a cirurgia – que o sintoma
"obesidade", que foi impedido pela cirurgia, pode, se não houve um
acompanhamento terapêutico satisfatório, começar a buscar novas vias
de expressão. Observamos duas vias principais que podem se formar: a
via depressiva e a via da compulsão.
A
primeira começa com sintomas vagos: sensação de vazio, perda de
interesse por coisas que anteriormente eram muito valorizadas, perda
de eficiência no trabalho e angústia. Pode, nos casos mais graves,
encaminhar para transtornos depressivos manifestos, como descritos na
literatura22,23.
A
segunda via que pode se abrir é a da compulsão. Vemos com muita
frequência que passado o primeiro momento de triunfo sobre o sintoma,
o traço impulsivo, existente já na base da personalidade do obeso
começa, pouco a pouco, a se fazer presente e pressionar o indivíduo
em direção ao alimento. Instala-se o terror e o fascínio pelas
bolachas que dissolvem na boca, pelo biscoito de polvilho, pelo leite
condensado, pelo sorvete e o chocolate. Uma verdadeira batalha
interna se impõe. Um descuido e o peso começa a subir de novo. Disse
uma das pacientes, no corredor do ambulatório, após deixar o grupo:
"doutor, eu não sei mais o que faço, não tenho fome, mas fico o dia
inteiro beliscando bolachas, e estou voltando a ganhar peso, mas não
consigo parar". Essa fala vem fortemente marcada por uma angústia que
transborda, em meio ao ar cansado de uma senhora visivelmente
aprisionada numa batalha interna, sem descanso, ou seja, o comportamento
compulsivo continua presente, e é a via do corpo, não do pensamento,
que está disponível para essa paciente. Como proporcionar ou
favorecer a atividade de pensamento para sujeitos que, durante quase
toda sua existência, tiveram como via preferencial para lidar com
conflitos e tensões internas o corpo? Está aí um grande desafio.
A
característica peculiar da população atendida coloca a equipe de
saúde frente a questões bastante particulares e que demandam atitudes
terapêuticas diferenciadas. Como a essência da estrutura psicológica
do obeso mórbido é constituída por elementos primitivos, ligados a
problemas em fases precoces do desenvolvimento emocional, com
intensos sentimentos de ódio frente à frustração e à falta, vemos
esse universo emocional interno transbordar para o ambiente do
ambulatório e por vezes contaminar o próprio funcionamento da equipe e
dos profissionais individualmente. Tal fenômeno ocorre a partir de
identificações projetivas maciças24 de elementos psíquicos
para dentro da equipe. Quantas vezes podemos facilmente identificar
atitudes de rejeição a certos pacientes que voltam a engordar, ou que
não conseguem cumprir corretamente a dieta, ou, então, em relação
àqueles que passam a ter queixas em relação à cirurgia (dores,
intolerância alimentar, etc.)? Acreditamos que esses sentimentos são a
consequência da projeção maciça do mundo interno dos pacientes na
equipe. Tal fato tem uma importância prática relevante, pois aponta
para a necessidade de os membros da equipe de saúde serem orientados
e, mais do que isso, de receberem suporte psicoterapêutico que os
capacite a identificar e elaborar internamente essa forte carga de
afetos que o paciente impõe. Caso esse cuidado não seja tomado,
podemos incorrer em erros muito facilmente, pois o tipo de
sentimentos e reações que o paciente obeso desperta são, muito
frequentemente, de rejeição e discriminação25,26.
Desse
modo, as reações emocionais que aparecem no campo de trabalho devem
estar no foco da atenção psicológica da equipe multidisciplinar. As
condutas de orientação, de esclarecimento e de apoio psicológicos são
absolutamente necessárias dentro de um grupo de pacientes que
funciona a partir de padrões psíquicos primitivos. Nesses, os
sentimentos de desamparo e o vazio são muito frequentes no
pós-operatório, principalmente no pós-operatório tardio, quando se
acham já distantes do período inicial de lua-de-mel com a cirurgia e
com a equipe. É fundamental que a equipe esteja instrumentalizada
para lidar com aqueles aspectos da dinâmica emocional dos pacientes que
irão contaminar o campo de trabalho da equipe com sentimentos de
rejeição (muitas vezes encoberto por formações reativas do tipo
"apego excessivo" ou "idealização" da equipe ou de membros dela),
dependência e adesão. Essas reações, se não são percebidas, tendem a
provocar reações na equipe, correndo o risco de levar o paciente –
que é a parte mais fragilizada desse cenário – a reações de rejeição
inconsciente à equipe e ao tratamento proposto e abandono do
seguimento pós-operatório.
Grande
parte da dificuldade em lidar com pacientes que funcionam no nível
do corpo – e o obeso mórbido é um exemplo disto – é que sua
comunicação se dá, prioritariamente, através de elementos
não-verbais, que são mais sentidos do que compreendidos racionalmente11,24.
Desse modo, qualquer tentativa de compreender e responder a essa
comunicação a partir da razão tende a gerar uma repetição estéril e
que deixa incompreendida a comunicação pré-verbal, o que leva a
reações negativas, tanto dos pacientes como da equipe de saúde.
Uma proposta de classificação das estruturas psicológicas dos obesos e seu manejo pós-operatório
Essas
experiências nos permitem propor algumas orientações para o
funcionamento da equipe multidisciplinar. Em primeiro lugar, vemos
como necessária a compreensão da estrutura mental daqueles sujeitos
que procuram o serviço.
A
partir da observação clínica dos pacientes e de referenciais
psicodinâmicos, distinguimos três grupos de pacientes: os de
estrutura melancólica, os de estrutura desmentalizada e os de
estrutura perversa. Cada uma dessas estruturas apresenta distintos modos
de enfrentar os desafios da cirurgia, com prognósticos e
complicações pós-operatórias diferentes.
A partir da descrição da melancolia feita por Freud27,
que seria uma condição na qual o sujeito passa a viver com a "sombra
do objeto" perdido incrustada na própria constituição do Eu e da
qual o sujeito não consegue se libertar, postulamos uma estrutura melancólica.
Esses pacientes, após a cirurgia, terão grandes dificuldades em
suportar a falta representada pela restrição alimentar com maior
probabilidade de desenvolver quadros depressivos e ansiosos. São os
mais propensos a desenvolver táticas de alimentação que compensem a
restrição da cirurgia, ou seja, são os que "beliscam" o dia todo,
compulsivamente, angustiam-se, mas não conseguem se controlar. A
sensação de falta torna-se intolerável ao reativar a vivência de
perda do objeto de amor. São os pacientes que respondem, ainda que
pobremente, aos medicamentos antidepressivos.
A estrutura desmentalizada
é, a nosso ver, um grande desafio no pós-operatório, pois são
sujeitos que funcionam com muito pouco elemento mental para elaboração,
e que, portanto, apresentam um contato muito pobre consigo mesmos e
com os outros. Atualmente, muitos autores psicanalistas têm procurado
fundamentar metapsicologicamente as patologias do vazio ou de
déficit, entre elas a obesidade mórbida28-31, nas quais
existe uma pobreza de representações mentais, com grande prejuízo
para a construção de símbolos e, consequentemente, para o pensamento
elaborativo. Esses pacientes, por faltar de elementos para a
elaboração, têm como via preferencial de descarga pulsional o corpo.
Para eles, as orientações técnicas e os esclarecimentos representam
muito pouco ou não são aproveitados, por falta de elementos de escuta
e de compreensão. Alguns continuam comendo quase como faziam antes
da cirurgia, já alguns meses após o procedimento, num ato automático e
pouco elaborado. O desafio que a cirurgia representa é muito pouco
percebido. A participação desses sujeitos no grupo terapêutico é
muito discreta, quase não falam, não emitem opiniões, permanecem
atentos à conversa dos outros. O risco de não conseguirem se manter
fiéis à proposta inicial, e mesmo de não conseguirem compreender a
complexidade do processo de emagrecimento proposto, leva-os muito
frequentemente a ganharem o peso perdido em poucos anos,
representando o procedimento cirúrgico um risco desnecessário.
Tal
postura denuncia aquilo que chamamos de esvaziamento psíquico, e que
é o que caracteriza as patologias de déficit. Devemos, pois,
questionar a indicação cirúrgica para estes sujeitos, ou melhor
dizendo, rever os critério para indicação cirúrgica, que talvez
deveriam ser mais rígidos, limitando-se àqueles nos quais a obesidade
causa grandes complicações para a saúde, com iminente risco de vida.
Por fim, baseados nas ideias de Freud sobre o fetichismo32, propusemos uma estrutura perversa.
Para esse autor existem alguns indivíduos que criam manobras para
driblar a percepção dos limites que são impostos pela realidade. Ao
se depararem com as inevitáveis faltas que a realidade continuamente
impõe, agem como se elas não existissem e, por fim, os outros devem
funcionar simplesmente como coadjuvantes dessa farsa da completude.
São sujeitos que criam impasses, pois necessitam de que a realidade
da falta seja o tempo todo burlada e, para isso, precisam da
complacência dos outros que os rodeiam. Serão, portanto, aqueles
pacientes que criarão problemas pós-cirúrgicos em função das
exigências que farão à equipe multidisciplinar, sobretudo aos
médicos. Como a via do corpo é a mais acessível, serão as queixas
corporais as mais frequentes, tais como dores abdominais indefinidas,
episódios de vômitos inexplicáveis clinicamente, intolerância
alimentar, episódios bulímicos. São pacientes que causam as mais
intensas reações emocionais negativas na equipe e mesmo nos outros
pacientes. Exigem atenção contínua da equipe, estão constantemente se
queixando, colocando a equipe como responsável pelo seu sofrimento, e
passando sempre a mensagem que "agora que vocês me operaram, são
responsáveis por minha insatisfação". A projeção de seu inconformismo
com a realidade que os frustra na equipe é maciça, e geralmente a
reação da equipe é de rejeição, quando não de uma agressão velada
ao paciente. No grupo terapêutico são disruptivos, jogam o grupo
contra o terapeuta e a equipe, "denunciam" as falhas do sistema de
atendimento e de membros da equipe de trabalho. São aqueles que mais
buscam a equipe de um modo invasivo e adesivo, o que desperta as mais
intensas reações contratransferenciais negativas.
A
partir dessas especulações teórico-clínicas, fica evidente que,
idealmente, qualquer candidato a submeter-se à cirurgia bariátrica
deveria passar por um processo investigativo de sua estrutura mental e
por uma abordagem psicoterapêutica profunda antes do procedimento
cirúrgico. Mas isso tornaria o procedimento quase inviável pela sua
complexidade, além da recusa da maioria dos pacientes, que querem uma
solução rápida para seu problema. Essa realidade pode ser contornada
pela presença, na equipe, de profissionais especialistas em saúde
mental e com boa experiência em práticas psicodinâmicas, bem como em
aplicação de técnicas psicoterapêuticas. Tais profissionais teriam
como papel identificar previamente a estrutura mental de candidatos à
cirurgia, propondo estratégias de abordagem psicológica pré e
pós-operatórias individualizadas, visando evitar que complicações
psicológicas viessem a tornar desnecessário todo o risco assumido
pelos pacientes e pela equipe.
Correspondência
Ronis Magdaleno Jr.
Rua Padre Almeida, 515/14
CEP 13025-251, Campinas, SP
Tel.: (19) 3254.2103, Fax: (19) 3203.2103
E-mail: ronism@uol.com.br
Recebido em 22/04/2008.
Aceito em 05/11/2008.
Não há conflitos de interesse associados à publicação deste artigo.
*
Este estudo foi realizado no Ambulatório de Cirurgia Bariátrica do
Hospital de Clínicas da Universidade Estadual de Campinas, e sua
execução contou com a colaboração do Laboratório de Pesquisa Clínico
Qualitativo da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP, coordenado
pelo Prof. Dr. Egberto Ribeiro Turato. É parte de projeto de pesquisa
de doutorado na área se Saúde Mental, devidamente aprovado pelo
Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas, UNICAMP
(parecer nº 534/2006). Título do projeto: "Vivências emocionais de
mulheres submetidas à cirurgia bariátrica no HC-UNICAMP: um estudo
clínico-qualitativo".
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