ISABEL
GARDENAL
Um estudo da linha de pesquisa
da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) que avalia hormônios
que regulam o apetite, coordenada pelo endocrinologista Bruno
Geloneze, apontou responsabilidade da grelina e da xenina,
hormônios recém-descobertos, para o ganho de peso das trabalhadoras
do turno da noite, indo contra o senso comum de que engordam
porque trabalham muito ou por conta do estresse.
Esses hormônios
atuam de forma desregulada no hipotálamo (parte do cérebro
que modula a fome e a saciedade) alterando o padrão de apetite
dessas pessoas, que passam a consumir alimentos mais vezes
e menos saudáveis. As consequências, além do ganho de peso,
é que essas mulheres poderão ficar inclusive mais predispostas
a desenvolver a indesejada síndrome metabólica, que promove
em seus portadores problemas como hipertensão arterial, dislipidemia,
diabetes e obesidade.
A fisioterapeuta Daniela
Schiavo, autora da pesquisa, comparou mecanismos de fome e
saciedade de 12 mulheres que trabalham no turno normal do
setor de limpeza do Hospital de Clínicas da Unicamp e 12 mulheres
que atuam no turno da noite. Segundo ela, vários trabalhos
na literatura indicam que as trabalhadoras do turno da noite
têm maior ganho de peso que mulheres que têm a mesma função
e trabalham de dia. Isso já está estabelecido mundialmente
em grandes casuísticas, diz. O que pouco se sabe são os motivos
que levam a esse ganho de peso e os mecanismos determinantes
para o comportamento relacionado à fome e à saciedade.
O senso comum diz “trabalhar
à noite aumenta o estresse e faz as pessoas comerem de maneira
errada”. Diz mais: “depois que a obesidade se instala, é difícil
as pessoas retomarem o peso original”. “Então também estudamos
pessoas que não tinham obesidade ainda. Apesar de a gente
ter feito um pareamento para idade, sexo, peso e atividade
física, essas mulheres que trabalhavam à noite já apresentavam
mais adiposidade abdominal, talvez sim ligado ao estresse
da atividade”, expõe Geloneze. No estudo, foi dosado o cortisol,
o hormônio do estresse.
A despeito da casuística
ter sido pequena, segundo ele, foram tomados cuidados essenciais
a uma pesquisa científica: só foram escolhidas mulheres, funcionárias
do setor de limpeza de um mesmo lugar e que exerciam o mesmo
tipo de função e na faixa etária entre 25 e 45 anos (em idade
reprodutiva portanto, sem o viés da menopausa). Tinham ainda
o mesmo padrão de atividade física. Não eram sedentárias,
a se ver pelo seu trabalho (que não é leve), contudo não têm
atividades programadas como frequentar uma academia, por impedimentos
socioeconômicos e culturais.
Além disso, elas tinham o
mesmo Índice de Massa Corporal (IMC), em torno de 26,5 (o
índice fica entre 25 e 30), com um leve sobrepeso, mas que
não é obesidade e nem tampouco um peso normal. Corresponde
a um IMC médio da população brasileira, afirma Geloneze. Pessoas
trabalhadoras noturnas há mais de um ano, que ainda não tinham
um ganho de peso relevante, foram entrevistadas para se conhecer
o seu comportamento alimentar: como era a sua sensação de
fome e de saciedade. O estudo apurou que elas sentiam dificuldade
em reconhecer a fome ou a saciedade. Como é possível saber
isso?
Hormônios
Quando chega o horário em
que a mulher habitualmente come, ela se lembra disso e recebe
um insight: ‘você está com fome’. Nesse momento,
ela em geral aponta para o estômago ou sente que ele está
‘sinalizando’ que é hora de comer. É o pico da grelina, produzida
ciclicamente pelo estômago com um pico meia hora antes da
refeição e uma redução acentuada 30 minutos a uma hora depois.
“O pico de grelina desencadeia a hora de comer e, na hora
que está com a sensação de saciação, ele fica com um nível
mais baixo.”
Além da grelina, há a xenina,
outro hormônio estomacal. No mesmo momento em que a grelina
bate lá em cima (o pico pré-prandial, antes da refeição),
a xenina bate lá embaixo. Quando a grelina cai após a refeição,
a xenina sobe. Fazem oposição e, assim, mantêm um certo equilíbrio.
Junto ao pico pré-prandial
da grelina, ocorre um ponto mais baixo ainda, tecnicamente
chamado nadir, quando se produzem hormônios opositores à grelina
– o GLP1, o PYY3-36 e a oxintomodulina. Eles são formados
no intestino e caem um pouco antes da refeição, subindo depois
dela. Na verdade, esses hormônios fazem a saciação, aquela
sensação de que a fome passou, de plenitude gástrica, que
acontece após a refeição.
Outro mecanismo, o da saciedade,
é aquela sensação que a pessoa tem de não estar com fome entre
as refeições, por volta das 10 horas, após o café da manhã,
e das 15 horas, após o almoço. Neste momento não há mais a
sensação de plenitude, mas ainda a fome não apareceu. É a
fisiologia normal desempenhada pelo hormônio leptina que estava
igual nos dois grupos de mulheres estudadas”, define o médico.
Testes
As mulheres estudadas foram
ao Laboratório de Investigação, Metabolismo e Diabetes (Limed),
localizado no Gastrocentro, para se submeter a um teste de
refeição padrão mundialmente aceito. Este teste consistiu
em ingerir uma barra de cereal e um copo de suco. Fizeram
uma refeição balanceada com carboidrato, gordura e proteína,
totalizando 515 calorias.
As mulheres que trabalham
no turno normal ficaram uma hora em repouso no Limed esperando
a hora de comer, às 8 horas, que coincidiu com o momento em
que tomam o café da manhã. O que Daniela Schiavo observou
é que elas tiveram um pico de grelina pré-prandial na hora
de comer e uma queda da grelina após a refeição. A xenina
caiu antes da refeição e subiu após dela. O GLP1, o PYY3-36
e a oxintomodulina não apresentaram queda acentuada, mas subiram
após a refeição.
O comportamento com as trabalhadoras
noturnas foi outro. Em sua rotina, elas tomam o café da manhã
mesmo quando não estão trabalhando. “Nós as pegamos num dia
de folga, para não terem o efeito do estresse de não ter dormido”,
comenta Geloneze. No dia em que trabalham, ao cumprirem o
turno, elas também tomam o café da manhã às 8 horas. Logo,
elas chegaram ao Limed e comeram como sempre.
Agora vem a parte ‘charmosa’,
anuncia o especialista. A grelina dessas mulheres antes da
refeição sobe um pouco e conseguem desencadear o mecanismo
de ‘comer’. Ocorre que, no pós-refeição, a grelina não cai
e elas não têm a queda fisiológica da saciação. Os hormônios
intestinais GLP1, PYY3-36 e oxintomodulina se comportaram
igualmente nas pessoas que trabalham de dia, já a xenina caiu
antes da refeição e subiu muito menos após a refeição. Resumindo:
a regulação de xenina e grelina antes da refeição está parcialmente
mantida, mas o efeito de elevar xenina pós-refeição e cair
grelina, muito importantes à saciação, estava sobremodo desregulado.
Essa pode ser a causa do fenômeno
de perda do ritmo biológico e da sensação de fome, saciedade
e provavelmente por uma alimentação que passa a ser irregular,
contribuindo para um aumento de calorias com o tempo. A pessoa
que não tem saciação, come pouco. Daqui a pouco come mais
uma vez e come de novo. Dificilmente faz uma refeição com
verduras, legumes, arroz, feijão e carne, alimentos de qualidade
e de baixa caloria. O pior, conta o endocrinologista, é que
as trabalhadoras noturnas são tratadas como as que ganharam
peso por outros motivos.
Talvez as mulheres não ingiram
uma quantidade maior de alimento, todavia qualitativamente
têm mais facilidade para fazer alimentação rápida, informa
Geloneze. O que vem a se somar a isso é a mudança do ritmo
biológico, determinada pelo horário da refeição, que leva
a uma mudança dos hormônios do estômago, o qual produz a grelina.
Esta foi descoberta em 2001. Acreditava-se que os mecanismos
de saciação eram determinados apenas pelos hormônios intestinais
GLP1, PYY3-36 e oxintomodulina. Não se conhecia a xenina.
À Unicamp coube o mérito
do primeiro trabalho científico da literatura comprovando
que a grelina após a cirurgia bariátrica em diabéticos não
sobe após o emagrecimento. Em pessoas que emagrecem, ela sobe.
Isso ajuda a explicar o porquê depois que as pessoas passam
por uma cirurgia bariátrica não têm tanta fome, mesmo tendo
emagrecido. Qualquer pessoa que faça regime tem mais fome.
Este foi um dos trabalhos pioneiros da Unicamp, de 2003.
O segundo grupo, da Universidade
de Washington, Seatlle, apresentou a cirurgia de forma inédita
a pacientes não diabéticos. Posteriormente, um aluno de mestrado
que desenvolvia pesquisa no Limed ficou um tempo naquela Universidade.
Dessa interação, surgiram trabalhos cooperativos e, no mesmo
ano, a Unicamp publicou um trabalho da cirurgia para diabéticos.
“No caso das trabalhadoras noturnas, descobrimos a desregulação
dos hormônios gastrointestinais, mas especificamente gástricos
– do tubo digestivo ao órgão endócrino. Mas estamos dizendo
aqui que a parte do tubo digestivo, o estômago endócrino,
está desregulado. Raramente se imagina o descompasso de um
hormônio que está determinando fome e saciação. Foi o que
descrevemos”, declara o médico.
Estudos envolvem
milhares de pessoas
No Limed, há três linhas
de trabalho em andamento hoje, cujos acrônimos são Brams
(Brazilian Metabolic Syndrome Study), Brains (Brazilian
Incretin Study) e Baros (que deu origem ao termo bariátrica).
O Brams, dividido em dois braços principais, é um grande
estudo que está sendo feito com sete mil pacientes para
avaliar a relação entre obesidade, distribuição de gordura
corporal, citocinas inflamatórias, resistência à insulina
e produção de insulina.
É uma investigação multicêntrica
financiada pelo CNPq e coordenada por Geloneze. Atualmente
é conduzida em Campinas, Itu, Fortaleza e Natal.
O trabalho, já na metade,
conta com quatro mil pacientes. Outro braço é o Brams Pediátrico,
que reunirá 1.000 crianças e adolescentes que serão estudados
quanto aos mesmos aspectos que compõem a síndrome metabólica
(dislipidemia, hipertensão, diabetes e adiposidade central,
produção de citocinas inflamatórias pelo tecido adiposo
e resistência à insulina por testes dinâmicos). Os dois
formam o primeiro estudo.
O segundo chama-se Brains
(Brazilian Incretin Study) e estuda os hormônios gastrointestinais
que modulam a produção de insulina. É um guarda-chuva da
linha de pesquisa que analisa hormônios gastrointestinais.
“Estamos estudando vários modelos. Um deles é esse das trabalhadoras
noturnas”, comenta Geloneze.
O terceiro estudo, o Baros,
analisa os mecanismos fisiológicos e fisiopatológicos da
cirurgia bariátrica, e várias técnicas e situações (com
diabéticos, não diabéticos, insuficiência renal ou não).
A perspectiva é que, com
o desenvolvimento de fármacos focados em mecanismos, o tratamento
interferirá na grelina suprimindo a produção pós-prandial
e, ao mesmo tempo, utilizará algum medicamento para aumentar
a xenina pós-refeição. Com isso, recuperaria-se o padrão
fisiológico, com repercussões na perda do peso.
http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/novembro2011/ju514_pag3.php
Nenhum comentário:
Postar um comentário