Food and
society: social meanings in Feeding’s History
Henrique
S. Carneiro*
RESUMO
A
História da Alimentação abrange aspectos diversos da cultura humana.
Necessidades
biológicas, recursos econômicos e sentidos culturais
investem
os alimentos de significados amplos. Este artigo situa alguns
desses
significados e analisa, particularmente, a origem e evolução do
uso
dos feijões e da constituição das técnicas de preparo e dos ingrediente
característicos
de um dos pratos mais típicos da culinária brasileira: a
feijoada.
Palavras-chave:
comida, História, feijão.
*
Professor Doutor de História da USP.
História:
Questões & Debates, Curitiba, n. 42, p. 71-80, 2005. Editora UFPR
sua
origem é tão antiga quanto a espécie humana, pois até mesmo espécies
animais
a praticam. A diferença entre a comensalidade humana e a dos animais
é
que atribuimos sentidos aos atos da partilha e eles se alteram com o tempo.
A
comensalidade ajuda a organizar as regras da identidade e da hierarquia
social
– há sociedades, por exemplo, em que as mulheres ou as crianças são
excluídas
da mesa comum –, assim como ela serve para tecer redes de relações
serve
também para impor limites e fronteiras, sociais, políticas, religiosas
etc.
Ao longo das épocas e regiões, as diferentes culturas humanas sempre
encararam
a alimentação como um ato revestido de conteúdos simbólicos,
cujo
sentido buscamos atualmente identificar e classificar como “políticos” ou
“religiosos”.
O significado desses conteúdos não é interpretado pelas culturas
que
o praticam, mas sim cumprido como um preceito inquestionável, para o
qual
não são necessárias explicações.
O
costume alimentar pode revelar de uma civilização desde a sua
eficiência
produtiva e reprodutiva, na obtenção, conservação e transporte
dos
gêneros de primeira necessidade e os de luxo, até a natureza de suas
representações
políticas, religiosas e estéticas. Os critérios morais, a
organização
da vida cotidiana, o sistema de parentesco, os tabus religiosos,
entre
outros aspectos, podem estar relacionados com os costumes alimentares.
O
primeiro, e mais óbvio, exemplo da relação da economia com a alimentação
é
a indicação da capacidade de sobrevivência de uma dada civilização, que
passa,
antes de tudo, pelo provimento dos gêneros alimentícios suficientes
para
sua manutenção e para a sua reprodução, daí uma relação direta entre a
demografia
histórica e a economia alimentar. O intercâmbio e os sistemas de
troca
são fundamentados, em grande parte, no tráfico de alimentos, é impossível
pensar
na história do comércio sem mencionarmos os principais produtos
em
causa. Na história da expansão das navegações modernas, que levaram
à
própria descoberta da América, a busca das especiarias como alimentos de
luxo
ou, mais tarde, das bebidas quentes, como café, chocolate e chá, foi o
mais
importante dos fluxos comerciais.
A
identidade religiosa é, muitas vezes, uma identidade alimentar. Ser
judeu
ou muçulmano, por exemplo, implica, entre outras regras, não comer
carne
de porco. Ser hinduista é ser vegetariano. O cristianismo ordena sua
cerimônia
mais sagrada e mais característica em torno da ingestão do pão e do
vinho,
como corpo e sangue divinos. A própria origem da explicação judaicocristã
para
a queda de Adão e Eva é a sua rebeldia em seguir um preceito
religioso:
não comer do fruto proibido.
A
comida e o sexo são duas fontes dos mais intensos prazeres carnais,
sendo
que o primeiro é indispensável na vida diária de todo ser humano. Só
depois
de violarem a regra dietária (não comer do fruto!) Adão e Eva passaram
a
perceber que estavam nus e a envergonhar-se disso, ou seja, tiveram a
consciência
simultânea da sexualidade acompanhada da culpa. Mas o gesto
original
deriva mais de outros pecados, tais como a gula e a soberba (de
querer
desafiar a Deus e provar do proibido), do que da luxúria que só nasce
como
consequência. Na economia libidinal humana, esses dois prazeres são
aproximados
de muitas maneiras, tanto na fase infantil, em que o seio materno
é
a fonte do máximo prazer, como nas práticas eróticas orais, tais como o
beijo,
em que o mesmo órgão da nutrição produz gratificação sensual. Nas
representações
de inúmeras culturas, associa-se sempre o sexo e a comida e o
verbo
comer costuma possuir um duplo sentido.
O
comer também é um ato cognitivo, pois conhece-se pelo gosto, o
que
levou Charle Fourier a propor o termo gastrosofia como mais apropriado
do
que gastronomia. As palavras saber e sabor aparentam-se. A origem das
duas
palavras é a mesma, o termo latino sapere, que significa “ter gosto”.
Isso
indica que a fonte do conhecimento empírico direto é etimologicamente
associada
ao sentido do gosto.
Em
praticamente todas as culturas, os alimentos sempre foram
relacionados
com a saúde, não apenas porque a sua abundância ou escassez
colocam
em questão a sobrevivência humana, mas também porque o tipo
de
dieta e a explicação médica para a sua utilização sempre influenciaram
a
atitude diante da comida, considerando a sua adequação a certas idades,
gênero,
constituições físicas ou enfermidades presentes. Daí uma noção
comum
de regime para a regulamentação do corpo e do Estado. O termo
derivado
do rex latino (rei) denota uma noção disciplinar, de controle, de
regência
micro e macropolítica das regras alimentares, assim como de outras.
A
concepção vigente por mais de dois mil anos na cultura ocidental foi (e de
certa
forma, no âmbito da cultura popular ainda é) a da teoria dos humores e
da
correspondência universal do micro e do macrocosmos. Em tal concepção,
o
corpo humano, os vegetais, as estrelas, assim como tudo no universo, possui
uma
correspondência íntima e cifrada, que caberia aos homens descobrir. Os
estados
de humor, as estações do ano, as temperaturas, as condições de secura
ou
umidade, os órgãos do corpo, as secreções, os temperamentos humanos são
interligados
numa estrutura quaternária. Assim, segundo tais idéias hipocráticas
e
galênicas, cada alimento corresponderia a certo grau de calor e umidade que
o
tornaria adequado a certas pessoas, idades, doenças etc.
Um
outro significado cultural fundamental do alimento é a capacidade
de
alguns produtos alimentarem não apenas o corpo como também o
espírito:
os alimentos-drogas. Um alimento-droga é um alimento que possui
efeito
psicoativo, tal como os álcoois, os excitantes possuidores de cafeína,
sedativos
como o ópio ou mesmo alucinógenos como certos cactos e certos
cogumelos.
Todos foram considerados alimentos sagrados e divinizados em
diversas
religiões. Os mais difundidos foram os fermentados alcoólicos de
grãos
ou de frutas, que continuam sendo, na forma das bebidas alcoólicas, os
principais
alimentos-drogas no mundo. A origem dos fermentados (cervejas
e
vinhos) perde-se no tempo. As cervejas estão ligadas à expansão de certos
cereais,
sobretudo o centeio e a cevada, cuja semente germinada é o malte,
especialmente
nas regiões férteis das grandes civilizações euroasiáticas. No
Oriente,
deu-se o mesmo com o saquê do arroz e, nas Américas, com as chichas
de
milho. Os destilados têm origem possivelmente árabe (daí a origem das
palavras
álcool e alambique), difundiram-se pelos monastérios europeus e só
se
tornaram produtos de grande difusão com os destilados de cereais e de vinho
e,
mais tarde, no âmbito do sistema colonial, com os derivados alcoólicos da
cana-de-açúcar,
o rum e a aguardente, peças-chave no sistema das plantations
e
do tráfico de escravos.
Mas
não são apenas os alimentos-drogas que suscitam, muitas
vezes,
comportamentos de uso compulsivo. Nada mais viciante do que certos
alimentos
ou mesmo o ato em si de comer pode tornar-se bulimicamente
viciante.
O alimento é o primeiro e o maior dos paradigmas do comportamento
moral,
ou seja, da aquisição de autocontrole. Desde o aprendizado do choro
para
a obtenção do seio materno até a introjeção de todas as regras dos
horários,
das quantidades e das qualidades dos alimentos, das formas de sua
ingestão,
que o alimento marca a formação das regras na infância. Mais tarde,
o
disciplinamento alimentar envolve o aprendizado do autocontrole na busca
da
justa medida, de um certo “caminho do meio” entre os extremos patológicos
da
anorexia e da bulimia. Esses dois pólos aplicam-se a praticamente todos os
comportamentos
que envolvem interação com produtos ou com necessidades
humanas.
A sociedade moderna, dominada pela lógica estrita do mercado,
pratica
um sistemático mecanismo de fetichização das mercadorias. As
técnicas
de propaganda apenas sofisticam a noção comportamentalista de
comportamentos
induzidos por reforços, massacrantemente repetidos ad
nauseam.
Por isso, somos tão viciados em marcas, especialmente de comidas,
bebidas,
vestuário etc., produtos da cultura material elevados à condição de
veículos
de valores abstratos ou de compulsões introjetadas como parte de
uma
indução deliberada do vício alimentar. Esse é um dos elementos que nos
permite
refletir sobre o crescimento da obesidade, problemas cardio-vasculares
e
diabetes na época contemporânea.
A
importância do fenômeno do fast-food tem sido corretamente
apontada
como uma das chaves para a compreensão da natureza dos problemas
sociais
de nossa época. Vários analistas têm identificado uma corrosão dos
hábitos
alimentares familiares, como as refeições partilhadas, o que leva
à
substituição da alimentação em casa pelos sistemas de restaurantes ou
lanchonetes.
A expansão da lanchonete, especialmente de algumas cadeias
construídas
sobre certas marcas, traz consigo um sistema alimentar específico
baseado
na substituição dos carboidratos complexos (cereais, amidos) por
carboidratos
simples (açúcares e gorduras), com conseqüências daninhas para
a
saúde pública e para a ecologia global.
Tal
sistema alimentar, baseado em carne, carboidratos e açúcar, também
provoca
a demanda de uma produção agrícola voltada para a forragem animal
(do
qual a soja é um dos exemplos flagrantes), com graves conseqüências
sociais
e ambientais.
Os
aumentos dos volumes de produção de grãos no mercado mundial
não
têm trazido um aumento da acessibilidade a esses alimentos por parte da
maioria
da população do planeta. A estranheza maior e o que mais choca a
qualquer
um que estude a história da alimentação humana certamente é o da
subsistência
da fome e da subnutrição nos dias atuais, em que a produção de
alimentos
é a maior de todos os tempos e os meios técnicos de transportá-los e
conservá-los
são os mais eficientes já conquistados. Isso é a máxima expressão
das
contradições e paradoxos provocados pelo crescimento de uma indústria
alimentar
e uma agroindústria baseadas no modelo gorduras animais, carne,
carboidratos
e açúcar.
Os
alimentos modernos são aqueles que se difundiram pelo mundo
por
meio da intensificação do comércio e do intercâmbio provocada pelas
navegações
transoceânicas da “primeira globalização” do século XVI, entre
os
quais o açúcar constituiu talvez o produto mais importante, mas também
os
álcoois destilados, as especiarias, as bebidas quentes, além de diversos
produtos
regionais que a época moderna universalizou (batata, tomate,
milho,
arroz, trigo etc.). Os historiadores, e até mesmo os arqueólogos, têm
identificado,
em fontes diversas, os hábitos e práticas alimentares do passado.
Fontes
escritas, tais como livros de época, inclusive os de receitas, somam-se
a
registros materiais, tais como objetos de cozinha ou os próprios alimentos,
preservados
em muitos contextos, para oferecerem informações úteis para a
reconstrução
das peculiaridades de cada época e lugar. Muito mais do que a
história
de um alimento específico, de uma forma de preparo, de uma receita
ou
de uma tradição específica, a História da Alimentação tem o desafio de
enfocar
o alimento em sua transcendência maior como símbolo. O que não
significa
que não devamos estudar também os pratos, as receitas, os molhos
e
os preparos em sua historicidade. Gostaria de encerrar fazendo menção a
alguns
aspectos históricos do que é talvez o nosso máximo prato nacional: a
feijoada.
A
feijoada é o prato nacional por excelência. Suas origens prestam-se às
mais
especulativas interpretações e costuma-se apresentá-la como a expressão
da
fusão racial brasileira, um prato feito pelos negros com as partes menos
nobres
do porco e com o feijão, de origem americana, num cozido de técnica
européia.
O grande Lamartine Babo já resumia essa síntese de identidade
nacional
dizendo que “do Guarani ao guaraná, surgiu a feijoada, e mais tarde o
Paraty”
(“Quem foi que inventou o Brasil”, carnaval 1934).
Na
verdade, tanto os produtos (porco, leguminosas, alho e cebola)
como
a técnica são de origem européia, mais especificamente ibérica e, se
quisermos
buscar uma origem mais longínqua, judia sefardita. Pasmem! A
feijoada
tem origem judaica... Mas e o porco? É claro que o porco vem depois.
Mas,
vamos por partes.
O
feijão preto é americano, assim como todo o gênero Phaseolus, que
possui
55 espécies, das quais apenas cinco são cultivadas: Phaseolus vulgaris,
P.
lunatus (feijão-de-lima), P. coccineis (ayocate), P. acutifolius (tepari), P.
polyanthus
(petaco). Sua origem ocorre tanto nos Andes como na Mesoamérica
(há
vestígios de cerca de 7 mil anos a.C. no México e de até 10 mil anos a.C. no
Peru,
no sítio de Guitarrero) e foi uma das plantas alimentícias mais importantes
dessas
sociedades, talvez a sua maior fonte de proteínas, pois ela possui uma
dupla
complementaridade com o milho, tanto no plantio como no seu papel
nutricional.
O cultivo de feijão entre o milho ajuda a fertilizar a terra, fixando
o
nitrogênio no solo e, do ponto de vista nutricional, ele possui um importante
aminoácido
(lisina), mas precisa ser combinado com a metionina, que o arroz
ou
o milho possuem. Uma dieta só de feijão ou outras favas pode levar a uma
doença
chamada favismo, de carência de certas proteínas. Mas associado a
cereais
(como o arroz, por exemplo) o feijão fornece um suprimento ideal de
carboidratos,
fibras e sobretudo de proteínas. As leguminosas (favas, feijões,
soja
etc.) são das poucas plantas capazes de fornecer proteínas. Por isso, a
chegada
do feijão americano à Europa foi tão importante.
Já
havia, no velho continente, um tipo de feijão, menor, que foi
substituído
pelas espécies americanas. Esse feijão antigo e medieval tinha o
nome
de faséolo e dele restou apenas uma variedade africana, o dólico, branca
com
um “olho” preto. O feijão americano apropriou-se do nome científico
(Phaseolus)
e das denominações populares (feijom, em português, fasoulia, em
grego;
fasulê, em albanês; fagiolo, em italiano; fasola, em polonês; fayot ou
flagelot,
em francês) do antigo feijão europeu, que passou a ser chamado pelo
nome
científico de Dolichos. Em francês, também adotou-se para designar
o
feijão americano o termo antigo para o nabo, haricot, confundido com a
denominação
mexicana em náuatle (ayacotl). O antigo feijão europeu, o dólico,
inseria-se
na categoria que os romanos chamavam de legumina, que incluía
as
sementes comestíveis (favas, grão de bico, lentilha, tremoço), distintos
das
holera, ou seja, plantas de que se comem a raiz e a parte verde (como as
couves).
Galeno definia as legumina como os “grãos de Deméter não usados
para
fazer pão” (FLANDRIN; MONTANARI, 1998, p. 226).
Em
espanhol, além do termo frijoles, derivado do Phaseolus, também
existe
o termo sul-americano porotos. Na Espanha, existem duas outras
palavras
que designam além de feijões outros grãos em geral, o termo judias
(não
descobri sua origem, seria talvez devido aos judeus a comercializarem ou
a
consumirem?), e o vocábulo alubias, de origem árabe (al-lubiya), usado para
certas
favas.
Hoje
em dia, usam-se muito na Europa os feijões brancos (também
de
origem americana) para muitos pratos tradicionais, semelhantes à nossa
feijoada,
como o cassoulet francês, especialmente o de Carcassone, até mesmo
na
Polônia existe uma feijoada polonesa chamada tsholem.
Anteriores
a essas feijoadas, no entanto, são os cozidos de favas. A
fava,
Vicia faba, tem origem no Oriente Médio e Mediterrâneo, nas antigas
civilizações
clássicas, havendo a tese de que seu nome deriva da família romana
dos
Fábios, que a cultivavam amplamente. Seu uso em Roma ultrapassava o
alimentar,
servindo como mecanismo para o sistema de voto (favas brancas
para
o sim e negras para o não). Existem cerca de 300 variedades de favas
de
diversas cores (brancas, negras, vermelhas, marrons, com pintas etc.). Em
inglês
estadunidense, utilizam-se os termos english bean, european bean ou
broad
bean para as favas, distinguindo-as do feijão americano, chamado de
kidney
bean.
O
uso de favas com carnes, linguiças e miúdos de porco ou aves constitui
uma
das mais antigas e ricas tradições culinárias do mundo mediterrânico,
em
todos os lugares se encontram as favas ao estilo local. Em espanhol, é
chamado
de cocido, puchero, sancocho, ajiaco, mas na Galícia e nas Astúrias
é
pote, na Andaluzia denomina-se puchero gitano, nas ilhas Canárias é o
almodrote
e na Catalunha a escudella. Todos esses cozidos de panela derivam
da
medieval olla podrida, cujo nome significa não apodrecido (podrido), mas
sim
poderoso, numa corruptela do termo medieval para poderoso (poderido).
É
famosa especialmente a de Burgos e Cervantes, em Dom Quixote, já faz
menção
a ela. Na França do final da época medieval ou no começo da época
moderna,
adotou-se pot-pourri como uma tradução literal do termo espanhol
olla
podrida. De um prato, esse termo passou a designar qualquer mistura em
geral.
A
origem mais remota, no entanto, viria na Península Ibérica das
técnicas
culinárias judaicas, que se especializaram em fazer um prato cozido
num
fogo muito lento, que era aceso antes da noite de sexta-feira para poder
durar
todo o sabá, permitindo comer comida quente sem ser preciso acender
o
fogo, proibido nesse dia como qualquer outro tipo de “trabalho”. O prato
judaico
na Espanha chamava-se adafina, e vem do termo árabe dafana, “tapar”.
Outra
interpretação atribui a origem dessa palavra à raiz hebraica d-f-n, com
sentido
de “pressionar contra a parede”, que seria uma forma de se vedar um
forno,
lacrando-o com argila úmida e apoiando-a num muro. Essa comida
judaica
possui outros nomes em distintas regiões, entre os judeus asquenaze,
é
conhecida como chulnt, chulent, cholent ou shalet, palavras derivadas do
termo
“quente” em hebraico, cham. Entre os sefarditas, utilizam-se os termos
hamin,
matphonia (Curdistão), shahina e deffina (África do Norte), haris
(Yêmen)
e tabit (Iraque).
A
panela ao fogo lento, tampada, com o conteúdo de um pot-pourri,
em
que se destacam favas e carnes, é a base da adafina judaica, assim como da
olla
podrida, do pot pourri e até mesmo do stewpot inglês. Isso não significa
que
todos tenham origem comum ou derivem da técnica judaica para manter
a
panela quente no sabá, mas que representam uma solução técnica adequada
para
utilizar alimentos misturados num grande ensopado de lenta cocção, que
é
o tartaravô de todas as feijoadas.
No
Brasil, desde as penetrações bandeirantes aos sertões, adotaram-se
roçados
de milho e feijão, cresciam rapidamente e podiam ser transportados
secos,
servindo, com um pouco de sal, como a ração básica. Como escreveu
Câmara
Cascudo (2004, p. 446), “o binômio feijão-e-farinha, estava governando
o
cardápio brasileiro desde a primeira metade do século XVII”. Todos as
crônicas
dos viajantes no Brasil colonial e imperial registram a importância
do
feijão em muitas misturas, com côco, com carnes e, mais comumente, só
CARNEIRO,
H. S. Comida e sociedade: signifi cados sociais... 79
História:
Questões & Debates, Curitiba, n. 42, p. 71-80, 2005. Editora UFPR
com
sal e farinha. Outra coisa, entretanto, é a feijoada completa, “o primeiro
prato
brasileiro em geral” (CÂMARA CASCUDO, 2004), que só tem registro
no
século XX. O cozimento em água com temperos é uma técnica portuguesa
que
se mistura com o hábito indígena da farinha de mandioca, por isso, afirma
Cascudo,
“o que chamamos ‘feijoada’ é uma solução européia elaborada no
Brasil.
Técnica portuguesa com o material brasileiro” (CÂMARA CASCUDO,
2004).
Embora
o feijão com arroz continue sendo o nosso prato ou
acompanhamento
mais característico, o consumo de feijão caiu de, em
média,
120g ao dia, em 1987, para 87g, em 1996 (IBGE). Hoje, consomese,
em
média, 16 kg por ano por habitante (no campo, dobra para 32 kg/ano/
habitante).
O Brasil é o segundo produtor mundial, ficando apenas atrás dos
EUA,
e as cerca de 2 milhões e meia de toneladas que produzimos são, em
90%,
o resultado de agricultura familiar e de pequenos e médios produtores.
Quatro
quintos da produção é de feijões coloridos e apenas 20% de pretos, o
que
tem levado o Brasil sistematicamente a importar feijão preto! A feijoada
continua
sendo símbolo de muita coisa, até mesmo de nossa dependência
econômica
estrutural.
História: Questões & Debates, Curitiba, n. 42, p. 71-80, 2005. Editora UFPR
Nenhum comentário:
Postar um comentário