O que a Psicologia pode fazer em relação à obesidade ?
A Psicologia tem diversas linhas de trabalho; isto é, existem diferentes teorias que pretendem compreender o funcionamento psicológico e definem a psique de modo distinto também. Em termos de tratamento direto sobre a obesidade, ou seja, sobre produzir emagrecimento, a psicoterapia cognitivo-comportamental é a mais específica. Ela busca eliminar comportamentos indesejáveis e prejudiciais ao indivíduo, por vezes substituindo por outros ou tirando-lhes o grau de importância e significado de modo que possam ser abandonados. Já as linhas teóricas que trabalham com o conceito de inconsciente, buscam causas mais profundas e significados mais inconscientes para o ato de comer, para a comida, para a emoção que acompanha o alimento, para a vida e a história do indivíduo que padece da obesidade, seus sofrimentos e ganhos. É uma abordagem mais ampla, menos focal e por isso mais custosa em termos de investimento de tempo, energia e empenho.
O que sugere a linha cognitivo-comportamental ?
De acordo com os autores desta linha teórica, nosso comportamento vem muito em resposta aos estímulos que recebemos. Quanto ao comportamento alimentar, devemos evitar então associação de outros estímulos prazerosos ao ato alimentar, para que o comer não passe a ser resposta a esses estímulos. Assim, por exemplo, comer vendo T.V. pode fazer com que o simples fato de ver T.V. evoque a resposta "comer". Assim também, quando o indivíduo compensa suas frustrações com um pedaço de doce, a conscientização em torno deste ato pode auxiliá-lo a promover um diálogo interno que o proteja deste ato de resposta automática.
Em se pensando em termos cognitivo-comportamentais, diminuir a exposição à estímulos é um recurso importante. Costumo brincar, dizendo que é mais fácil fazer dieta no SPA do que dentro de uma confeitaria. Assim, outras recomendações dadas por autores desta linha de trabalho em Psicologia são:
- Evite deixar alimentos expostos em embalagens transparentes, do tipo "vidro com biscoitos"; bombonière; "taça com balas coloridas "etc. Dificulte sempre o acesso a alimentos de muitas calorias;
- Ritualize o ato de comer, preparando a mesa e o prato, mesmo que coma sem companhia;
- Evite ir ao supermercado em horários de muita fome e leve uma lista de compras para não se deixar seduzir pelos estímulos;
- Coma lentamente, saboreando a comida.
- Estabeleça intervalos entre as refeições de modo que não sejam longos demais ao ponto de aguçar o apetite;
- Preste atenção no seu estômago, de forma que perceba que está satisfeito.
E como trabalham as linhas mais analíticas em relação à obesidade ?
Na verdade, o que se trabalha é muito particular em cada pessoa. Tudo vai depender da história dessa pessoa, de sua relação com a comida e onde ela a encaixa na sua vida. De maneira mais geral encontramos sempre uma necessidade de se sentir cheio; sem nada faltando; completo; mas a emoção que acompanha o ato de comer e o depois que se come, e mesmo a sensação de perda de controle tem significados muito particulares. É difícil falar do trabalho em psicoterapia quando a enxergamos como um processo muito individual, particular e até inexplicável. Um recurso muito utilizado é a atenção dada aos sonhos, aos enganos, às fantasias, às coincidências e tudo aquilo que no dia-a-dia consideramos besteira. Essas "besteiras" podem indicar um caminho diferente de autoconhecimento que permite que a pessoa não busque mais no ato de comer a resolução de sua vida, ou o tenha como fonte única de prazer.
E a cirurgia para emagrecer ?
Parece uma coisa agressiva e absurda, mas quando ouvimos pessoas obesas e nos colocamos em seu lugar, podemos entender que a cirurgia é tão ou menos radical e violenta que a própria obesidade. É claro que existe um ganho estético e uma conquista de beleza, mas o objetivo é a busca da manutenção da saúde e da vida. Seria mais ou menos como colocar um freio automático num carro potente que detectasse a presença de um motorista alcoolizado. Estaríamos dando às pessoas sem limite, um "basta!" que ela sozinha não consegue dar. Isso não quer dizer que o obeso não tenha força de vontade. Muito pelo contrário, pois a maioria dessas pessoas já fez muitas dietas e já chegou a perder até 30 Kg , mas manter essa perda só seria possível se ela se isolasse totalmente do estilo de vida que todos nós levamos: competitivo e acelerado.
Costumo dizer para quem vai se submeter à cirurgia bariátrica que ele deve estar consciente de que irá dormir com uma mansão e acordar com uma quitinete; por isso mesmo deve selecionar que objetos vai levar para sua nova casa. Com essa imagem quero transmitir que, embora a cirurgia dê um limite quantitativo para a comida, não se pode abandonar o cuidado com "o quê" se come, pois o preço da cirurgia é um cuidado constante com a nutrição, para que não faltem nutrientes necessários para a saúde.
Outro ponto positivo da cirurgia, é libertar a pessoa do uso constante de remédios para emagrecer, pois essas drogas provocam comprometimento no funcionamento normal do cérebro. Todos eles agem de forma a excitar o sistema nervoso e com isso alteram o comportamento emocional dos seus usuários. Aqueles que já têm tendência a desenvolver ansiedade e depressão são um prato cheio para as conseqüências ruins do uso desses medicamentos. Já tive contato com pessoas que necessitaram de internamento psiquiátrico por causa desses remédios e outras que até hoje sofrem de depressão ou de uma agitação e irritabilidade constantes além de terem agravado seu quadro de comportamento compulsivo de comer. Todos sabem que a cada dieta a pessoa tende a engordar tudo e mais um pouco, principalmente depois do uso desses remédios que inibem o apetite.
Qual o perigo da cirurgia do ponto de vista emocional ?
Vejo como perigo, principalmente os casos em que a pessoa tem o comportamento compulsivo de comer. Esses indivíduos comem não só por prazer, o que aliás é muito raro acontecer. De modo geral sentem angústia, culpa, sensação de falta de controle, desespero, raiva de si mesmas, e não conseguem parar de comer até que passem mal. Essas pessoas nem sequer selecionam o que vão comer e chegam a se alimentar de alimentos frios, resto de comida dos outros e em geral comem sozinhas, escondidas e infelizes. Tomam leite condensado na lata, creme de leite com açúcar, fazem papinha de leite em pó e preferem sempre o doce ao salgado. Às vezes, essas crises de comilança duram 2 a 3 horas e depois disso a pessoa tem raiva e até nojo de si mesma. Comer fica mais marcado pelo sentimento de destrutividade do que pelo prazer.
Nesses casos parece que a "comilança" exerce uma função maior, permitindo a explosão de um afeto que quer sair a todo custo. Além disso, depois que a explosão acontece há um alívio da excitabilidade que antecede o ato de iniciar a comer. É um quadro muito semelhante ao alcoolismo e precisa ser tratado conjuntamente com a cirurgia, caso contrário, teremos um compulsivo e vomitador crônico que estará disfarçado de magro.
Qual o pior período após a cirurgia?
Para cada um a cirurgia é uma experiência muito individual, mas parece que o período imediato após a operação é o pior. É a fase em que o indivíduo ainda não vê resultados e está sofrendo restrições alimentares e físicas, além de perder sua autonomia, mesmo que por pouco tempo. Depois disso vem a fase da "lua de mel" com a cirurgia para depois ela deixar de ser o centro da vida desta pessoa e a vida continuar.
É importante o obeso se conscientizar de que magros também sofrem rejeições, são reprovados em testes de emprego, perdem entes queridos, erram em suas atitudes e sofrem conseqüências de seus atos. A cirurgia é a chave para o emagrecimento mas não para a porta da felicidade eterna.
Que outras repercussões podem ocorrer devido à mudança radical que ocorre no indivíduo obeso?
Existem casos em que há uma adaptação do casal ou da família com a pessoa do modo que ela se apresenta antes da operação: gorda, com baixo amor próprio, sem expressar suas reais emoções ou desejos.
Vamos pensar numa moça de 22 anos que não iniciou vida sexual, com 1.60m e 154Kg. Ela faz a cirurgia e um ano depois está com 23 anos e 59Kg. Opta por fazer cirurgia plástica e seis meses depois está com 55,5Kg e resolve voltar para sua Faculdade de Medicina Veterinária que havia abandonado. Está mais bonita, com seu amor próprio aumentado e começa a namorar um ex-professor. Como reagirão os pais dessa moça, ao saber que a filha tão pacata, após a cirurgia, assumiu estar tomando anticoncepcionais?
Agora um casal, em que ele é o obeso. Tem 38 anos, 1.84m e 175Kg. Entre eles já não havia mais atividade social ou sexual. Um ano e meio depois, este homem encontra-se em seus plenos 90Kg, já com plásticas feitas, e deu asas ao seu sonho de tornar-se motoqueiro. A esposa entra em crise por ciúmes e desconfiança e resolve se separar por não acreditar mais na fidelidade do marido que passou a ser assediado por garotas mais jovens e bonitas. Infeliz com a perseguição ciumenta da mulher, ele concorda em romper seu casamento.
Estes exemplos nos mostram que quando interferimos em um indivíduo, todo o grupo que o rodeia sofre repercussões desta mudança. Mas é claro que , os benefícios da melhoria da auto-estima de uma pessoa também contaminam aqueles que a rodeiam.
Por quê as pessoas obesas não fazem exercícios físicos ?
Infelizmente fazemos parte de uma sociedade preconceituosa que considera o gordo um preguiçoso. Na verdade o excesso de peso tira a disposição física e psíquica do indivíduo, além de provocar lesões articulares ou dores excessivas e cansaço. Muitos desses obesos tem péssima qualidade de sono, o que os coloca sempre sonolentos ou irritadiços em seus contatos diários. São pessoas que já fizeram uso excessivo de inibidores do apetite, e carregam resquícios depressivos e ansiosos que aparecem também no humor que apresentam. São indivíduos discriminados e alvo de piadas, olhares e comentários. Além disso, o exercício físico é visto dentro de um programa de perda de peso, ou como castigo por ter comido, ou como sacrifício que não apresenta resultado satisfatório. Pense o que são 5 Kg para alguém que tem 50 a perder? O que acaba ocorrendo é que ao chegar ao final de 45 dias com 5 Kg a menos, a falta de reforço social e mesmo familiar e individual acaba por levar à uma recaída, que é sempre pior em sua intensidade.
É preciso que vejamos o exercício físico como fonte de endorfinas. A endorfina é uma substância natural que o próprio organismo produz quando praticamos exercícios físicos dentro de um limite saudável. É uma espécie de morfina natural que interage com a serotonina ( o neurotransmissor envolvido na depressão e em outros quadros emocionais ). Deste modo, vejo o exercício físico como um remédio, um "medicamento" para a depressão.
Por quê ser acompanhado por um psicólogo?
Tenho cada vez mais clara a necessidade de um profissional "Psi" no processo de transformação de um obeso mórbido em um indivíduo dentro de padrões físicos normais. Dos 163 indivíduos ( até março de 2000 ) que passaram por entrevista de avaliação, 105 apresentavam quadro de ansiedade e 85 de depressão. Muitos falaram que comiam quando ficavam ansiosos ou se frustravam com alguma coisa, mas muitos poucos tinham buscado tratamento para os sintomas emocionais. 137 tinham usado ou ainda usavam remédios para emagrecer, mas só 66 aceitavam medicações para ansiedade ou depressão. Psicoterapia: somente 47 tinham experimentado ou estavam fazendo.
" DA PERSPECTIVA PSICOLÓGICA "
Por ser um problema determinado por múltiplos fatores, a obesidade necessita de um tratamento multidisciplinar dentro de uma perspectiva psicossomática. Neste sentido, a preocupação central não é emagrecer o indivíduo, mas considerar a experiência pessoal e particular de cada um enquanto obeso. No trabalho psicoterapêutico, as entrevistas iniciais objetivam a conscientização de que a cirurgia não é um processo em que o sujeito se mantém passivo sendo emagrecido como que num passe de mágica, mas implica sim em um ônus que marca principalmente o campo psíquico. A operação precipita uma série de transformações que afetam as relações do indivíduo consigo próprio e com os outros.
O modo como cada obeso se relaciona com a comida é fator de importância na avaliação pré-cirúrgica. A questão é trazer à consciência o lugar ocupado pelo alimento na vida de cada indivíduo, para que se detecte a possibilidade de mudanças na relação obeso-comida. O vínculo com o alimento ou com o ato de comer pode ser marcado pelo prazer, pela gratificação, pela agressividade auto-dirigida, pela ansiedade, pela assexualização entre outros fatores. Este modo relacional tende a ser deslocado para outro objeto quando a ingesta excessiva é bloqueada pelo processo mecânico instalado cirurgicamente.
A tendência individual ao comportamento aditivo deve ser investigada, bem como a presença de sintomas de depressão associada ou não, ao comportamento compulsivo de comer. Quando necessário, o uso de antidepressivos a compulsão alimentar é parte complementar do tratamento. A aplicação do teste de investigação bulímica de Edinburgh (BITE) e entrevista clínicas auxiliam na constatação de comportamentos purgativos que podem comprometer o resultado cirúrgico.
No pós cirúrgico o foco terapêutico passa a ser a nova imagem e as repercussões sobre a personalidade do indivíduo. Liberto do sintoma encobridor, a obesidade, conflitos mais básicos tendem a emergir. O feed-back recebido pela nova apresentação exige do indivíduo uma adaptação e principalmente a consideração do corpo até então ignorado.
Muitos obesos relatam não ter de si a visão de um corpo excessivamente gordo. é através de fotos e dos olhares alheios que se dão conta de sua forma. A maioria dos indivíduos gordos não possuem espelhos que mostrem o corpo todo e suas identidades ficam restritas às próprias faces. O tratamento global para a obesidade implica na reparação dessa cisão que se expressa externamente, mas reflete todo um funcionamento psíquico de divisão. Os pacientes são estimulados a se tocarem, se olharem e se perceberem emocionalmente no decorrer do surgimento de uma nova forma corporal.
Observa-se que muitos obesos não conseguem abrir mão de sua forma e muito menos dos benefícios que a "capa" de gordura fornece enquanto defesa. Há indivíduos que submetidos à operação de Mason tendem a adaptar-se à alimentação pastosa e/ou líquida de alto teor calórico, boicotando o resultado cirúrgico. Ou em casos mais graves, forçam a hiperingesta alimentar, chegando romper as fileiras de grampos que criam o processo mecânico de limite de entrada de alimento.
Estes casos tem deixado clara a necessidade do trabalho multidisciplinar, mas poucos são os pacientes que aceitam o tratamento psicoterápico. a maior parte permanece no papel passivo e projeta o insucesso na técnica jurídica, isentando-se das responsabilidades sobre a vivência transformadora da criação de uma nova identidade.
De um modo mais genérico pode-se dizer que a questão do obeso gira em torno da vivência do limite e de sua própria identidade sexual. Deformados pela gordura perdem suas formas femininas ou masculinas e são assim impedidos de uma vivência sexual madura, campo que exige uma transformação de nível mais profundo.
O corpo gordo serve também de metáfora para a força e a grandiosidade que refletem a concepção inconsciente que o obeso tem de si como auto-suficiente e ilimitado. Esse fator de "onipotência" tem surgido como principal barreira na procura do psicoterapeuta no período pós cirúrgico, além das naturais resistências ao movimento de aprofundamento.
Assim a preocupação não é discutir qual a etiologia da obesidade, mas poder considerá-la como um problema de saúde que necessita de tratamento clínico e cirúrgico, que considere o portador da obesidade; que favoreça um recontato com o corpo até então rejeitado e agredido e que surge como reflexo de um processo interior envolto em conflitos.
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